São Paulo, quinta-feira, 13 de setembro de 2007
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ANNA VERONICA MAUTNER

Gramática: o chato que é bom

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UM TEMPO DE VERBO ERRADO, UMA VÍRGULA MAL COLOCADA, UM ACENTO FORA DE LUGAR E EIS-ME DIZENDO O QUE NÃO PRETENDIA

A natureza nos dotou de um cérebro capaz de dar nomes, e nós desenvolvemos a capacidade de, a partir dos nomes, entender o mundo. Nessa passagem, criamos a gramática.
Essa é uma das mais desprezadas áreas dos currículos escolares. Assim tratam a gramática alunos e quiçá mestres também. Infelizmente, não há destreza sem exercício. Gramática é exercício de observação da língua. Conhecer a gramática é uma experiência de nos desprendermos da linguagem para melhor observá-la.
Se eu falo, se me expresso, é porque pretendo comunicar algo, e isso deve ser feito de tal forma que o outro me entenda. Um grito de dor nos fala de dor, mas não diz qual, onde, de que tipo. Se eu quiser ser socorrida, preciso explicar o que está ocorrendo, não basta assinalar. Posso dizer, sem querer, o que não pretendo e não conhecer o jeito de dizer o que desejo.
Duas abordagens, pelo menos, são básicas para que a gente se comunique a contento: conhecer de onde vem a linguagem (lingüística e etimologia) e de que jeito ela se organiza. Um tempo de verbo errado, uma vírgula mal colocada, um acento fora de lugar e eis-me dizendo o que não pretendia.
A língua intuitiva, essa que todos falamos, é o que de mais humano e específico possuímos. Ela não veio pronta, do jeito que a encontramos hoje. A nossa forma de expressão tem sua história, que é praticamente cúmplice de cada cultura. A gramática é a organização do nosso fluxo verbal, é a nossa garantia de dizermos aquilo que pensamos.
Quando um estrangeiro aprende a língua só de ouvido, sem gramática, ele quase sempre perde a liberdade das nuances e dos jeitinhos -a riqueza e a especificidade de cada língua, indo da ternura até a raiva. Quando se estuda o inglês, que é uma língua dotada de uma estranha gramática, pelo menos para nós, de origem latina, deparamo-nos com o "spelling" (ortografia) e com as expressões idiomáticas, tudo vindo do próprio uso, e não das regras.
O inglês é uma língua de poucas regras e muitas exceções. As línguas latinas, por outro lado, são regradas por uma extensa gramática, com muitas regras e poucas exceções.
As suas regras não são oriundas do acaso, constituem um jeito de raciocinar. Estudar gramática é pensar frases ou orações. Achar o sujeito da ação, a ação presente ou passada, o objeto dessa ação, combinar tempo, modo, número e fazer concordâncias é pensar sobre o que está sendo dito.
Fazer análise sintática, morfológica ou lógica é criar comunicação independentemente de motivação ou de emoção. O exercício de nos desprendermos da linguagem e de olhá-la como algo estranho a nós mesmos é um fantástico exercício de raciocínio do qual talvez estejamos privando as novas gerações ao não dar ênfase ao estudo da gramática. Estudar gramática, dizem por aí, é chato. "Pra que serve?" "Para melhor pensar, meu filhinho" -só que ninguém quer ser lobo mau hoje em dia.
Não há pianista que não estude escalas, não há esportista que não faça exercício diário e não há quem consiga se expressar bem sem ser capaz do distanciamento necessário para melhor dominar tanto a fala quanto a escrita.
Até hoje, os cursos superiores mais avançados de física e de matemática na França dão preferência a alunos oriundos do colegial clássico, onde tinham grego e latim. Dizia-se que chegavam com melhor treino de raciocínio.
Deixar cair em desuso o exercício de distanciamento é grave. Tomar uma sentença qualquer e analisá-la como destacada de nós, é esse o exercício. Não é possível interpretar texto sem conhecer a organização da linguagem. A dificuldade de interpretar os textos e de entender os livros está, pelo menos em parte, na falta desse exercício que nos leva à distância ideal para entender sem se misturar com o enunciado. Isso, em resumo, é função da gramática, um exercício para compreender o discurso no mundo.


ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br


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