São Paulo, quinta-feira, 13 de outubro de 2005
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S.O.S. família

Anna Veronica Mautner

A imensa vontade de ter certezas

Quanto mais se massifica a sociedade, mais a família nuclear ganha importância. A responsabilidade do casal sobre os filhos é enorme. Não se confia na escola, nos mestres como antigamente. Nem a televisão é completamente confiável. A própria família vai ficando desacreditada. Os pais duvidam de sua aptidão para fazer as escolhas certas. Não há como fugir da responsabilidade de orientar e propor. Não sabemos mais proibir com eficiência, já que nossos princípios sofrem repetidos abalos. A atração dos fundamentalismos pode ser entendida como uma imensa vontade de ter certezas.


Os pais duvidam de sua aptidão para fazer as escolhas certas; não sabemos mais proibir com eficiência, já que nossos princípios sofrem repetidos abalos


Ai que saudades do tempo em que cada um de nós era capaz de enunciar o futuro que desejava para os filhos e, assim, escolher acertadamente as influências sociais, culturais, religiosas etc. que os orientariam para a direção desejada. Colocando os filhos em escolas religiosas, dizíamos de nossa preferência por uma vida tradicional. Certas escolas laicas denotam a preferência dos pais pela prática de esportes e pela saúde. A escolha da escola e as formas de lazer têm embutidas esperança e ideologia.
Quando certos pais encontravam encantos no escotismo, por exemplo, estavam imbuídos dos princípios de respeito à natureza, à uma hierarquia social, à meritocracia, a ideais de justiça e responsabilidade. Quando um jovem acantonado pratica como fazer fogo sem fósforo, ele está à procura de experiências novas, ausentes do seu cotidiano familiar e escolar. A criança de família religiosa que freqüenta, com o apoio da família, atividades da igreja além dos rituais coletivos, entra em contato com uma forma de transcendência diferente do escotismo, mas não menos importante, pois os pais, permitindo essas ligações, ampliam seu horizonte, despertam a bravura.
Enquanto família, igreja, Estado e escola vão perdendo a rigidez e ganhando flexibilidade, dogmatismos e fanatismos irrompem aqui e ali fazendo as vezes de verdades. Diria: estão faltando fé, esperança e até caridade -as três virtudes do catecismo católico. Não pode haver fé, esperança ou caridade em clima de intolerância à diversidade. Se tudo for igual, se não houver "outro diferente", para que enumerar virtudes? A interação pacífica entre os indivíduos exige pertinência ou simpatia a várias instituições que congregam outros pontos de vista. É preciso aceitar que não somos todos iguais, mesmo tendo iguais direitos.
A diversidade cria a possibilidade de nos aglutinarmos a semelhantes e funcionarmos dentro de esperanças em comum. A falência de muitas instituições ao mesmo tempo deixou um vácuo de conteúdo e transcendência e deixou no ar a idéia de que "tudo é relativo". E as festas, os ritos de iniciação, os diplomas, as promoções foram ficando relativos, quase banais. Esperança, só se valer a pena, se tivermos fé, se sentirmos pertencer a um certo grupo diferente do outro grupo.
Os antigos conteúdos ideológicos não nos pegam mais. Vão retornando devagar, em outras embalagens, e o direito à felicidade aparece com a força de uma tempestade. O direito ao prazer e ao triunfo vai ocupando o vácuo. Identificamo-nos com o movimento ecológico por meio de livros, de contribuições eventuais e até de práticas individuais. Posso apoiar o consumo consciente sem integrar qualquer movimento organizado, sustentado apenas na grande voga moderna de pertinência que são os grupos virtuais.
A família pode tentar assumir certas diretrizes, mas organizações parafamiliares não são em quantidade suficiente. O apego dos jovens à internet não me deixa mentir. O Orkut, os blogs, o MSN são a salvação da necessidade dos jovens de conseguirem interagir sem a explícita supervisão das desacreditadas instituições que os governam.

ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
@ - amautner@uol.com.br



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