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São Paulo, quinta-feira, 13 de novembro de 2003
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outras idéias - anna veronica mautner

Quando começamos a pagar "meia" no cinema e no teatro, quando ninguém mais nos chama de "você", fica mais fácil viver o presente

Alegria, alegria

Numa certa idade, a crença num futuro melhor perde a razão de ser. Quando começamos a pagar "meia" no cinema e no teatro, quando ninguém mais nos chama de "você", fica mais fácil viver o presente. Aí paramos de nos comparar. Já somos ou não o que esperávamos vir a ser. Não há mais por que competir, fazer comparações. Todos já aposentados ou parcialmente aposentados, nós vamos vivendo e nos conformando em cortar os supérfluos. Até os filhos, na nossa ótica, já não dependem de nossas contribuições -sejam monetárias ou morais, já estamos isentos.
Será que por aí estaria um segredo de polichinelo? Será que a paz entre os homens dependeria da possibilidade de viver o "aqui e agora", como já se dizia em Woodstock?
Os encontros entre amigos podem ser leves e agradáveis, sem subterfúgios, dissimulações. Se não estamos doentes ou incapacitados, tornamo-nos cada vez mais capazes de sentir alegria. Fala-se muito do bem-estar que nasce da alegria que se obtém de pequenas coisas. Pois é exatamente quando os cabelos já estão brancos -pintados ou não- que podemos usufruir não só do merecido repouso próprio dos lutadores mas também do merecido bem-estar próprio da paz de quem curte simplesmente a luz que o Sol nos dá.
Um dia nublado faz as cores dos objetos próximos ganharem realce; o dia com céu de brigadeiro, por outro lado, ilumina e colore tudo entre nós e o horizonte. A chuva faz erguer-se da terra o cheiro de molhado. A folha nova que começou a abrir ontem na planta do vaso que temos no beiral da janela na área de serviço atrai nosso olhar mais de uma vez por dia. Enquanto ficamos olhando aterrorizados para a nossa têmpora refletida no espelho à procura de mais um fio de cabelo branco, não sobra tempo para acompanhar a folha nova do vaso velho. E as plantas renascem todo ano. Não param nunca de renascer, se bem aguadas e olhadas.
Recentemente, um grupo de contemporâneos de uma velha escola, eram 14 as pessoas, reuniu-se para um jantar informal na casa de alguém da mesma época, oriundo da mesma faculdade. Encontramo-nos com certa assiduidade nestes 50 anos. De início, a coisa parecia que não ia engrenar. Milagre! Não sei por que, num canto da mesa, alguém começou a cantarolar. Terá sido um hino? Sem mais, estávamos todos, cada um do seu jeito, entoando hinos cívicos, religiosos, corporativos e até escolares. Havia à mesa uma estrangeira à mesa que olhava com certo espanto. Não foi fácil cochichar-lhe o que era aquilo tudo. No final, ela, se não entendeu, pelo menos, percebeu o inusitado da situação. Nem planejando e ensaiando poderia ter sido tão alegre. Com olhar um pouco mais crítico, diria que mais nos desafinamos do que entoamos. Mas, como o tempo da comparação, da auto-afirmação, da construção da imagem já tinha ficado muito atrás, ninguém se incomodava com outra coisa senão com a alegria do momento.
Daquele encontro casual, em que só foram planejadas a lista dos presentes e a comida, nasceu um desejo do reencontro na forma de dois projetos que eu não sei se vão ou não se concretizar. Mas isso é o que menos importa. O importante é que queríamos, quase todos, continuar o clima de alegria que ali se instaurara. Foi ali lançada a semente de um grupo de leitura e declamação de poesia e de um outro grupo para fazer ginástica ou dança às quartas-feiras à noite. Se der certo, se alguém tomar a iniciativa de organizar, vai ser pura alegria. Se não construirmos juntos uma idéia... Nem só de sonhos de futuro se alimenta a humanidade -de alegrias pueris também.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui todo mês; e-mail: amautner@uol.com.br


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