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São Paulo, quinta-feira, 15 de maio de 2003
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outras idéias - michael kepp

O seu gosto cinematográfico revela muito mais sobre você do que sobre os filmes a que você assiste, sobre seus medos e suas fantasias mais íntimas

Como falar sobre filmes

Por causa de minha natureza crítica, eu encaro filmes que todos adoram com uma certa dose de pesar. Se gosto, como aconteceu com "Central do Brasil" e com "Cidade de Deus", sou tomado pelo alívio que vem do consenso, da felicidade de não ter de nadar contra a corrente.
Mas, se o tal fenômeno cultural me deixa morno ou mesmo frio, como se deu com "Carandiru", como posso dizer isso aos amigos que perguntam e esperam consenso, sem fazer de mim um alvo? Como evitar que entendam minha crítica do filme que adoraram como um desafio para um duelo verbal sobre os méritos da produção?
Para evitar essa "troca de tiros", eu poderia simplesmente mentir e dizer que adorei o filme. Aparentar conformidade, uma tática usada por alguns, evita a polêmica e o confronto que advêm de opiniões cinematográficas conflitantes.
Mas a dissimulação não é uma dança que eu recomende. E uma voz honesta, apesar de dissonante, por vezes encontra companhia. Quando perguntei à minha enteada se ela havia gostado do elogiadíssimo "O Pianista", ela arriscou um honesto "não" e, para seu alívio, eu concordei com ela.
Então, como essas vozes dissonantes desarmam companheiros cinéfilos prontos para chamá-las ao combate? Primeiramente, o seu gosto cinematográfico revela muito mais sobre você do que sobre os filmes a que você assiste, sobre seus medos e suas fantasias mais íntimas e até sobre seus preconceitos e suas crenças políticas. Uma forma de arte tão pessoal assim tem tudo para tocar nervos expostos, reabrir velhas feridas, provocar reações apaixonadas.
Por isso o modo mais seguro de criticar um filme é usar uma resposta cuidadosamente pensada. Alguns amigos, entretanto, irritantemente perguntam o que você achou do filme enquanto os créditos ainda estão rolando -geralmente, evitando ter de dar a opinião deles primeiro. Se o encurralarem assim, pode dizer: "Interessante. E você?". Ou mencionar uma cena de que tenha gostado.
Se não gosta de se esquivar, sugiro que diga se gostou ou não do filme em vez de dizer que foi maravilhoso, péssimo ou algo no meio. Por que dar a impressão de que é um conhecedor da qualidade cinematográfica, uma arrogância estética que provoca discussões?
Diferenças culturais também explicam gosto cinematográfico. Quando um amigo brasileiro não acreditou que eu tivesse gostado de "Chicago", eu, um americano, entendi que ele pode não ser capaz de apreciar o filme porque o musical de Hollywood não faz parte do seu vocabulário cultural. Mas evitei o duelo poupando-o desse comentário e, em vez disso, aplaudindo o filme por sua crítica mordaz da sociedade americana.
Uma opinião curta e concisa também é menos antagonística do que uma longa e pedante. Eu critiquei "Carandiru" simplesmente dizendo que, pelo fato de ser a versão fiel de um diário, não tinha estrutura dramática, a cola necessária para fazer com que as cenas se desenvolvessem umas sobre as outras. Quando um amigo me perguntou por que eu tinha gostado da recente comédia romântica "Separações", que ele arrasou, eu o desarmei dizendo apenas que "me fez rir".
Pelo fato de as pessoas adorarem ou detestarem filmes por uma infinidade de motivos, que em geral não são conflitantes, debatê-los pode enriquecer sua apreciação deles. Isso só não é verdade quando as discussões se tornam passionais e viram uma torre de Babel. Filmes não falam uma língua universal. Se falassem, as pessoas não teriam opiniões tão diversas sobre eles. Essa cornucópia de comentários -e o que revela sobre as pessoas que os fazem- transforma os filmes em um assunto fascinante.


MICHAEL KEPP é jornalista americano, radicado no Brasil há 20 anos; e-mail: mkepp@terra.com.br


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