São Paulo, quinta-feira, 17 de agosto de 2000
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FOCO NELE
'Tratamos as crianças com muita truculência'

Nome: Julio Groppa Aquino
Idade: 36 anos
Profissão: psicólogo e professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Tese: com a democratização do país, toda a estrutura de organização do espaço social mudou, e a sociedade perdeu os referenciais de funcionamento das instituições sociais; suas reflexões hoje são sobre a ética na educação, propõe um amplo debate sobre o assunto


"Todas as questões que as crianças trazem para a escola são tomadas como desvio, como anomalia, como disfunção. No nosso tempo, quem não fazia as coisas era vagabundo. Agora, é um aluno problema"


BELL KRANZ - EDITORA DO EQUILÍBRIO

Psicólogo e professor da Faculdade de Educação da USP, Julio Groppa Aquino chuta o pau da barraca ao avaliar o desempenho do professor hoje. De cara, sugere que professores sejam professores, nada de atuar no campo da moral, que isso é assunto de pai. Para os pais, sobra um solene "chega-pra-lá": "Que fiquem fora da sala de aula". Aquino propõe uma séria e profunda discussão sobre ética na educação. Leia a entrevista abaixo.

Folha - Por que discutir ética na educação?
Julio Aquino
- É uma discussão rara de ser levada a cabo porque se parte sempre do princípio de que todos os profissionais da educação são éticos. E isso não é verdade. O que acontece é que, com a democratização do país, toda a estrutura de organização do espaço social mudou bravamente. Vamos pegar, por exemplo, as instituições sociais que dão conta da nossa vida cotidiana: a família, a escola, o trabalho, o estádio, as emoções de consumo, as emoções de sexualidade... A gente perdeu os referenciais de funcionamento dessas instituições. O pai, por exemplo, não consegue mais ser o que o pai dele foi, não é? Então, sempre pergunto para as pessoas, para uma mãe, por exemplo: "Você se considera uma boa mãe?" Ela fala assim: "É, eu tento ser". O que seria uma resposta impensável para a mãe dela, que tinha certeza de que era uma boa mãe. Porque ser uma boa mãe era repetir o que a mãe dela foi. Havia aquela coisa do modelo muito forte. Nós jogamos fora os modelos. Colocamos outros? Estamos batendo a cabeça para encontrar esse modelo. E isso é discutir ética.
Folha - O que você acha da queixa constante de educadores sobre a falta de limite das crianças e de respeito à autoridade?
Aquino
- Discordo profundamente disso. As crianças de hoje são muito mais limitadas do que a gente porque elas estão circunscritas num mundo muito mais cheio de apelos, muito mais complexo do que foi o nosso. Sobre respeito à autoridade, a criança tem plena consciência quando o outro pode ocupar o seu lugar de uma maneira ética, correta, justa. Um exemplo: as crianças ficam loucas quando o professor abandona o posto dele.
Folha - Para virar o quê?
Aquino
- No ensino médio, tem a história de virar amigo. No ensino fundamental, tem a história do pai e da mãe. Em vez de apenas cumprir a sua função, que é trabalhar em torno do conhecimento, trabalha em torno do campo da moralização. E esse é o campo dos pais. Os alunos não querem que aquela pessoa seja pai. Isso é uma grande confusão de papéis. Como a gente perdeu o modelo do que é ser professor, vale qualquer coisa! Sou um ferrenho lutador contra a idéia do professor ser de tudo um pouco. O fato de eu perder um modelo fixo, estereotipado, que é aquele que a gente tem dos nossos pais, que a gente negou, não significa que eu tenho que multiplicar os meus papéis a tal ponto de precisar ser um superpai. Ou então, um superprofessor. Os professores padecem de impotência por causa da inoperância deles.
Folha - A escola hoje parece estar sempre buscando na educação dada pela família resposta a questões que aparecem na escola. Você concorda com essa orientação?
Aquino
- Os educadores padecem de um equívoco complicadíssimo, que é atribuir às duas instituições que competem com a escola na questão da educação, a mídia e a família, todos os males de que a escola padece. Então é assim: as crianças não se interessam porque a mídia as endureceu. Ou as crianças são indisciplinadas porque os pais não têm pulso firme. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Do contrário, a gente teria que inverter a lógica também. Que aluno indisciplinado na escola vira filho malcriado em casa. E não faz sentido. Não consigo imaginar que um aluno que esteja apresentando um problema na escola tenha, necessariamente, problema em casa. E essa é a tese de sempre. Os melhores alunos também têm problemas em casa.
Folha - Qual deve ser a postura dos pais?
Os pais devem ficar fora da sala de aula. Eles têm que delegar. Principalmente em escolas privadas, você vê uma intromissão absurda dos pais no trabalho dos professores. O trabalho fundamental dos pais com relação à escola é o de encorajar as crianças. É preciso separar papéis. A pergunta é fundamentalmente ética: o que é que eu estou fazendo aqui, como pai ou como professor?
Folha - E o que os alunos querem?
Aquino
- Numa palavra só? Professores. Professores que saibam, que tenham o domínio no seu campo de conhecimento, que tenham o domínio metodológico. Mas, fundamentalmente, que tenham generosidade nos seus atos. A gente trata as crianças com muita truculência. Não somos generosos com elas no sentido de acolhê-las. Todas as questões que as crianças trazem para a escola são tomadas como desvio, como anomalia, como disfunção. No nosso tempo, quem não fazia as coisas era vagabundo. Agora, é um aluno problema.
O que é, em geral, o aluno problema?
Aquino
- É o indisciplinado e o que padece de distúrbios. Olha a nomenclatura que nós, profissionais da educação, usamos. Anomalia, disfunção... Nomenclatura médica para descrever essas crianças. Então, há uma guerra com essa molecada, com o que eles estão trazendo, que é muito triste. O meu grande trabalho é desfazer o conceito de aluno problema e trabalhar com a diferença.


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