São Paulo, quinta-feira, 18 de julho de 2002
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outras idéias

gustavo ioschpe

Óculos de sol transparentes

Depois das canetas com cheiro, da água mineral com confete e das camisinhas musicadas, esgotaram-se as possibilidades do fútil, e só restou o automartírio

Os fashionistas de plantão haverão de perdoar a minha defasagem em relação aos "trends" do momento, mas só fui saber, tardiamente, da existência dos óculos de sol transparentes neste verão passado, quando uma ex-quase-namorada os mencionou. De início, confesso, "naïf" assumido, não ter entendido de que se tratava. Pois não eram os óculos de sol destinados a proteger seus usuários da luminosidade emitida por nossa estrela-guia? (e, de quebra, permitir-nos olhar tudo aquilo que seria interditado se os outros notassem nosso fito?). Logo mais, captei.
Os óculos de sol transparentes são uma provocação e uma piada; por trás deles, quase se vislumbra alguém piscando o olho e sorrindo para nós, como que contando o final de uma história só compreensível aos iniciados e deliciando-se na esperteza de tudo aquilo. Pois esses óculos são um emblema do consumismo que já nos envolveu, uma sátira à nossa época e aos nossos costumes, à metalinguagem dos marqueteiros. Se num primeiro momento da nossa idade pós-Revolução Industrial as máquinas eram utilizadas para fabricar o útil e, num segundo momento, o supérfluo, esses óculos anteviam o terceiro momento: depois das canetas com cheiro, do chocolate sem açúcar, da água mineral com confete e das camisinhas musicadas, esgotaram-se as possibilidades do fútil, e só restou o automartírio. Agora nem mais útil nem fútil -resignemo-nos ao deliberadamente inútil e, quase, contraproducente: óculos escuros claros. Depois disso, o sapato sem sola, o band-aid com germes, a cadeira só de pernas e braços e o guarda-sol de vidro convexo. E seus usuários, iconoclastas pós-modernos, acenam-nos, como que dizendo: esse negócio de consumir para ter já era; hoje, é um esporte. E não temos nem mais o consolo de não poder ver seu olhar cínico.
Confesso que fiquei apreensivo. Porque todo mundo sabe que aquele papo do "fim da história" era uma bobagem, e todos os que acreditaram que o mundo mudara depois que dois aviões se jogaram contra umas torres já entenderam a dimensão de seu erro. Mas os óculos de sol transparentes eram o indício claro do desastre vindouro, insidioso e silente como toda catástrofe em sua gênese, que só se desnuda completamente quando o iceberg já furou o casco e o navio já foi a pique, banda e tudo.
Os óculos de sol transparente anunciavam-se como um marco, o fim de um ciclo. Já se fizeram óculos redondos, quadrados, retangulares, de gatinho, ovais; pretos, marrons, vermelhos, azuis e amarelos (amarelos... flertávamos com o desastre e nem sabíamos); removíveis, com "flap", espelhados etc. Mas... transparentes? O que se poderia fazer depois de torná-los transparentes? Não havia o que fazer. Por alguns instantes, amparei-me na esperança de que essa invenção demoníaca viesse a ser repelida por consumidores e fabricantes, bem como aquela outra coleção de produtos autofágicos, como a luz que nunca queima ou a vela que nunca apaga ou a pilha recarregável. Mas não: os óculos transparentes estão por aí, lépidos, aparentemente vendendo bem. Quer dizer, tanto seus fabricantes como usuários estão despudorados em seu desapego às convenções sob as quais convivemos. Ou convivíamos. Confesso que cheguei a pensar: depois dos óculos transparentes, o dilúvio. Ou a revolução. A loucura em massa.
Estive tenso durante todo esse período, mas agora vejo que, como todos os outros catastrofistas antes de mim, sem razão. Folheando o "Times", vi um anúncio de uma dessas marcas francesas de sua nova coleção de verão, e estava lá, se não me falha a vista: um par de óculos de sol com lentes escuras e um pingente de pérola na haste. Claro, por que não? Um ano, um pingente de pérola, noutro, um brilhante incrustado, no ano seguinte, quem sabe um miniventilador ou um potinho de protetor solar acoplado? As possibilidades são infinitas, e o ciclo se renova. Estamos seguros. Nosso modus vivendi sobreviveu.
Agora entendo o que Gandhi quis dizer quando, indagado sobre o que achava da civilização ocidental, respondeu brincando ("pero no mucho"): "Uma boa idéia".


GUSTAVO IOSCHPE, 25, faz mestrado em desenvolvimento econômico em Yale (EUA); e-mail: desembucha@uol.com.br


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