São Paulo, quinta-feira, 19 de fevereiro de 2004
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s.o.s.família

rosely sayão

Consumismo deturpa relações pessoais

Crianças e adolescentes estão duramente submetidos à sedução do apelo ao consumo. Os pais sabem muito bem disso. Afinal, não há um dia em que o filho não queira ver determinado programa, vestir aquela roupa, usar certo acessório, comer lanche de tal lugar ou ir ao shopping, entre tantas outras possibilidades. Se ele gosta ou não, quer muito ou nem tanto, pouco importa. O que vale mesmo é que, diariamente, o filho compra alguma idéia e ponto final. Ocorre que o alcance dessa influência pode ser bem maior do que muitos pais suspeitam.
A mãe de dois adolescentes contou um fato que nos permite pensar sobre isso. Um dos filhos precisou -e assumiu que queria- colocar aparelho ortodôntico.
Mesmo quando um jovem quer muito alcançar o resultado previsto por esse tratamento, vamos convir que é bem difícil assumir tal compromisso. Afinal, ele precisa usar o aparelho, o que não é muito agradável, e ainda comparecer regularmente ao consultório dentário para o acompanhamento necessário. Por isso os pais precisam fazer marcação cerrada para ajudar o filho a dar conta da empreitada. Não é fácil para os pais nem para o filho. Mas, para quem quer e/ou precisa, dá para chegar lá.
Mas muitos desistem logo de cara, outros bem no meio do caminho. Foi o caso do filho de nossa leitora. Deixou de usar o aparelho e também de honrar o compromisso assumido com a odontologista, que solicitava a presença dele mensalmente.
Quando um adolescente resolve desistir de um compromisso, o jeito mais fácil de colocar a decisão em prática é simplesmente esquecer o que tinha de fazer. Os pais conhecem muito bem essa manha: num dia, o filho esquece completamente que tinha horário agendado; noutro, arruma um compromisso mais urgente; depois reclama que está cansado e, assim, consegue desistir sem ter de deixar clara sua posição.
Acontece que a mãe do garoto em questão não deixou por menos: chamou o filho à responsabilidade e avisou que, caso ele não cumprisse o combinado em duas semanas, ela desistiria do tratamento. E foi aí que nossa leitora teve a chance de perceber como é que o filho queria desistir do compromisso que havia assumido. Para ele, bastava deixar de pagar o combinado com a profissional e pronto.
Aí está uma marca forte que a influência da valorização excessiva do consumo provoca: o vínculo com as pessoas e a relação consigo mesmo cede lugar à relação com o bem material e/ou com o dinheiro. Pessoas são reduzidas à mesma condição de coisas, por isso são consideradas vendáveis. E não é preciso que os pais dêem exemplos práticos desse tipo de atitude para que os filhos sofram tal influência: toda a sociedade já tem esse comportamento.
O que os pais precisam -caso desejem educar os filhos de modo a fazê-los priorizar as relações humanas- é praticar um tipo de educação que ofereça ao filho essa outra opção. Foi o que nossa leitora fez. Ao perceber o que o filho queria fazer, não permitiu. Marcou a última visita à ortodontista responsável pelo tratamento do filho e fez com que ele fosse pessoalmente comunicar que estava interrompendo o tratamento.
O filho foi, reclamando muito, como de praxe, mas a mãe insistiu. Depois que o filho cumpriu a obrigação, explicou a ele, com simplicidade, que tinha insistido para que ele aprendesse que não era o dinheiro a questão mais importante naquela história, e sim o respeito à profissional e a si mesmo.
É assim que as melhores lições são aprendidas pelos filhos: quando os pais impõem a realização de determinados atos que formam, no conjunto, atitudes que os pais consideram importantes para aquela família. Muitos pais não se dão conta de que a falação, a lição de moral e a argumentação desconectadas da ação têm efeitos bem menos eficazes quando se trata de educar. E sempre é bom lembrar que o resultado do ato de educar aparecerá bem mais tarde, quando o filho tiver maturidade para agir com independência e liberdade em relação à própria vida.


ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha); e-mail: roselys@uol.com.br


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