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São Paulo, quinta-feira, 19 de junho de 2003
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outras idéias - anna veronica mautner

Abandonamos a era do pecado e nos instalamos na era do insalubre. Hoje o que orienta o nosso bem-estar são os ditames da medicina.

Alguns vícios

De autor de gestos elegantes, dotado de criatividade invejável, o fumante de anteontem perdeu a graça e a elegância para ser hoje uma criatura envergonhada. O fumante pede licença, pergunta se incomoda, dirige-se para uma janela sempre que possível. Sente-se sempre ameaçado pela decretação de uma lei municipal que vai restringir, ainda mais, seu espaço.
Vamos aos fatos. Qualquer um pode olhar um filme antigo e ver com que orgulho os artistas mais prestigiados ostentavam um cigarro entre seus dedos. Havia garbo no gesto. A mão bem colocada e o movimento suave eram marca registrada de cada fumante. Não acho exagero dizer que muitos se expressavam-se mais fumando do que falando. Nunca ninguém fumou tão lindamente quanto Lauren Bacall. O braço e a mão com o cigarro eram recursos maravilhosos para seduzir, repelir, desdenhar ou encantar. Era como o leque nas mãos das mulheres nos salões de baile de uma época mais recuada ainda.
A fumaça -ora, a fumaça!-, quem se incomodava com ela? Podia ser expelida de mil formas -bravas, brincalhonas, sedutoras. Dos anos dez até os anos 90 do século que já se foi, soltar fumaça era um grande recurso expressivo. Creio que ninguém discute que o cinema daquela época foi o grande mestre da arte de fumar. Uma mulher fumando despertava o galante da alma dos homens. Saltavam os mais próximos, com seus isqueiros para acender o cigarro das damas. Mesmo os homens não-fumantes tinham de ter à mão isqueiro ou fósforo para aproximarem-se galhardamente da dama que abria a sua cigarreira. Cigarreiras e isqueiros eram itens de presente para datas especiais. A etiqueta era rígida: mulher não acendia cigarro de homem; se houvesse intimidade, podia passar-lhe o seu cigarro aceso para que ele acendesse o seu com a brasa dela.
As crianças invejavam, os pobres procuravam imitar a rica coreografia embutida na arte de fumar.
Confesso que, até a década de 80, a fumaça dos cigarros nunca me atrapalhou. Nem mesmo baforadas na cara me despertavam sentimentos negativos. Fazia parte da vida social. Lembro-me de grupos de estudo, de sessões de psicoterapia, de workshops, onde, por horas, em recintos fechados, participantes acendiam um cigarro no outro, gerando uma fumaça espessa como a neblina da madrugada. Sem reclamação. Fumava-se em avião, trem, automóvel, bonde. Sem reclamação. Fumar não era transgressão nem agressão.
Dedos amarelados, unhas manchadas, pigarro eram parte da vida dos adultos.
Não lembro como ocorreu, mas, de repente, fumar já não era mais chique. Depois percebi que não havia mais cigarro na filmografia e nos palcos. Ele começou a aparecer só em enredos de época, isto é, daquele tempo que já passou. Às vezes, quando se queria sinalizar "bas fond", marginalidade, podia até aparecer o novo vilão da história nos dedos de algum malvado.
Que se saiba, nos 70 anos de glória do cigarro, a humanidade não sofreu mutação genética observável, mas a fumaça do cigarro tornou-se aversiva, muitas vezes para as mesmas pessoas que antes participaram do mundo encantado dos fumantes. Hoje, fumar em um carro fechado não é sentido apenas como transgressão, é desrespeito.
A mutação que ocorreu com o nosso sensorial em relação ao cigarro não se deu sozinha nem veio do nada. As ciências médicas e paramédicas decretaram os malefícios do cigarro. Como nós vivemos sob a censura inquisitorial da ciência, fica estabelecido que o cigarro não é bom para a saúde. É pecado contra o corpo. Outras tantas coisas foram entrando para a categoria de tabu por terem sido declaradas como atentados à saúde. Faz parte do nosso conhecimento popular médico que açúcar refinado é veneno, que fritura faz mal, assim como tudo aquilo que pode se transformar em colesterol mau. É também visto como crime contra a saúde tudo o que impede a respiração e faz mal à coluna.
Abandonamos a era do pecado e nos instalamos na era do insalubre. Hoje o que orienta o nosso bem-estar são os ditames da medicina. Se ela diz que faz mal, então não pode. A saúde vence a ética, apoiando-se na estética.
Açúcar refinado, óleos saturados, agrotóxicos, sedentarismo fazem mal, engordam e criam feiúra.
No que diz respeito ao cigarro, eu não entendo o pulo-do-gato. Açúcar faz mal e, por isso, diminuímos seu consumo, mas nem por isso odiamos açúcar, da mesma forma que a visão de alguém comendo um doce não nos enoja. O cigarro, que já foi tão chique, hoje é feio e mais: desperta horror tanto ao fumante quanto à fumaça e aos cinzeiros. Mas como é que a gente, fumante ou não, aguentava o mundo do cigarro e agora tosse, tem alergia, passa mal, fica com o nariz entupido e outras tantas reações?
Eu confesso que mudei. Não é pura chatice ou implicância. Só de pensar em cigarro eu já tenho mal-estar. Antigamente, eu nem percebia qualquer desconforto.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui todo mês; e-mail: amautner@uol.com.br


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