São Paulo, quinta-feira, 19 de dezembro de 2002
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outras idéias maria celia de abreu

Amigos não são plantas nativas em nossa vida; precisamos ter a iniciativa de ir procurá-los e descobrir onde estão, assim como um pesquisador vai atrás de mudas de plantas raras

Que tal agora?

Todos passamos por momentos difíceis no decorrer de nossas vidas. Isso é inevitável. Então, por que não nos preparamos, quando tudo está correndo bem, para ultrapassar tais crises com um mínimo de sofrimento? Em parte, é porque temos pensamentos supersticiosos: se não pensarmos em dificuldades, não as atrairemos! Ou, então, quem sabe estejamos acima dessas fatalidades... Em parte também, por pura inércia e preguiça.
Uma autora contemporânea norte-americana, Gail Sheehy, afirma que há quatro pilares que nos sustentam nas épocas difíceis: o bom humor, o empenho numa atividade ou num trabalho, algum tipo de religião e os amigos. Concordo plenamente com ela e acho que as coisas funcionam bem melhor se esses pilares já estão sólidos quando a crise chega do que se tentamos solidificá-los durante a crise.
Vamos refletir um pouco sobre um dos pilares, o dos amigos. A partir de um olhar pragmático, uma rede de relacionamentos pode ser muito útil para abrir portas e dar sustentação quando precisamos. De um ponto de vista psicológico, são os outros que preenchem nossas necessidades de afeto e de sociabilidade.
Refletimos com mais coragem sobre nós mesmos -nossos erros e acertos- na presença do outro do que faríamos se estivéssemos sozinhos. Da experiência alheia, extraímos lições para nós, pois observamos o que acontece com os outros e, principalmente, percebemos e compreendemos o que se passa no interior deles, o que só se alcança conversando. Interagindo com outros, ficamos sabendo de novidades, atualizamos nossas informações; descobrimos pontos de vista diferentes dos nossos, que nos permitem o autoquestionamento. Enfim, nós aprendemos, nós nos renovamos e melhoramos como seres humanos. É da interação com os outros que levantamos indicadores sobre nossa conduta, nossas idéias, nossos planos e que estabelecemos nossa auto-estima.
Tudo isso é especialmente verdade para a fase da maturidade, quando, geralmente, as relações de trabalho são drasticamente modificadas pela aposentadoria e a estruturação da família evolui para novos modelos, em razão do crescimento das crianças, que se tornam adultas, e da perda de membros mais idosos.
Contudo não é só para estar mais forte para uma possível crise futura que vale a pena cultivar amizades. Amigos valem para o aqui e agora. Mesmo quando tudo vai bem, eles nos preenchem, nos aquecem o coração, nos animam, nos dão a oportunidade de exercer o dom da doação, nos dão um significado extra para a vida. Se a vida não é uma felicidade perene, mas apenas tem momentos de felicidade, conviver com amigos tem um lugar importante nesses momentos.
Só que amigos não nos aparecem se não vamos em busca deles. É preciso um esforço pessoal para ampliar e para reavivar uma rede de relacionamentos. É uma ação que ninguém pode fazer por nós; se delegamos essa tarefa a outrem, os laços que se fortalecem não são os nossos. Amigos não são plantas nativas em nossa vida; precisamos ter a iniciativa de ir procurá-los e descobrir onde estão, assim como um pesquisador vai atrás de mudas de plantas raras. Além disso, amigos não se criam da noite para o dia: são plantinhas de estufa, delicadas, que pedem cuidados regulares, adubação, regas, podas e que vão florescendo e frutificando com o tempo. Mais complicado ainda: a amizade é uma planta que precisa ser regada de dois lados; se um dos lados fica preguiçoso, passivo, omisso, a plantinha não se desenvolve.
Para quem andou inerte em relação a alimentar seu relacionamento com amigos, o final do ano me parece uma época especialmente favorável a que se tomem iniciativas nesse sentido. Telefonar, marcar um encontro, pensar numa lembrancinha fica mais fácil sob o pretexto das "boas-festas". Depois, é só não se recolher de novo à inércia. Embora demande algum esforço, os benefícios futuros o compensarão com folga!


MARIA CELIA DE ABREU é doutora em psicologia da educação e psicoterapeuta dedicada à meia-idade, autora de "Para ser Estudante da Meia-Idade em Diante" (ed. Gente)


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