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São Paulo, quinta-feira, 20 de novembro de 2003
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outras idéias - thereza pagani ("therezita")

As crianças captam dos pais a atitude de partilhar o convívio social, atualmente em baixa, principalmente nas grandes metrópoles

Como as crianças aprendem a partilhar

Muitas vezes, chegam casais questionando: "Por que fulaninho ou fulaninha não larga do meu pé? É só abrir a porta, e o tumulto começa, eles não dão trégua". E dizem isso de forma enraivecida, com os dentes serrados e os punhos fechados. A criança sensível percebe os sentimentos e quer constatar o que sentiu também. Se há clareza do adulto, ele olha nos olhos da criança e diz: "Cheguei muito cansado(a), estou triste, hoje trabalhei muito, preciso tomar um banho gostoso sozinho(a), me ajude." Não há filho ou filha que não entenda quando é passado um sentimento verdadeiro e o jogo é limpo. Devemos estar atentos à nossa forma de relacionamento com eles, pois é o primeiro caminho para a lealdade, o autoconhecimento, a intuição e o reconhecimento primário de sensações.
Conheci uma criança que, depois de ter chamado o pai por algum tempo -ele estava lendo jornal e não a atendia-, levantou de onde brincava, arrancou literalmente o jornal do pai, amassou-o e pisou nele com muita raiva. Felizmente, o progenitor não brigou, apenas perguntou: "Por que você fez isso?". O menino respondeu: "Porque você, quando pega o jornal, não ouve que estou chamando". Essa e outras linguagens infantis são motivo de sérias controvérsias familiares.
Com mais frequência, ocorrem cenas semelhantes com as mães hoje em dia em virtude da jornada dupla ou tripla das chamadas "mulheres maravilhas". O fato é que, a bem da verdade, como dizia minha avó Tetê, quando a mulher sai para trabalhar fora, por mais que ganhe, o dinheiro que entra pela porta da frente sai pela cozinha, pela porta dos fundos ou, se não, pelas janelas com médico, hospital -para não citar psicólogo e psiquiatra mais tarde. Questão de opção.
Quero deixar bem claro que sou a favor de a mulher trabalhar fora e de se realizar como profissional, porém, se optar por ter filhos, prepare-se para enfrentar a realidade de estar ausente como mãe por um período do dia. Trabalhe no horário em que as crianças estiverem na escola, pois assim nem mãe nem filhos se frustrarão tanto.
Há mães que manifestam incapacidade de serem continentes de angústia dos filhos e dizem que eles ficam melhor com as auxiliares, e estas reforçam esse pensamento, dizendo: "Estava tudo às mil maravilhas. É só a senhora chegar, que tudo desanda, por que será?". A pergunta cai no vazio, e o caos se estabelece tarde e noite adentro. Conclusão: a cada dia os pais chegam mais tarde em casa, o assunto da investigação vai sendo prorrogado, e o conhecimento da "enciclopédia filho", totalmente terceirizado.
A criança chega à escola feito uma manteiga derretida, com olheiras, sonolenta, jardim de sensitivas, não admite ser tocada, mas está louca por um colo. Este não é negado, então logo ela se aconchega como um "bichinho acuado". Minutos depois, espontaneamente, pula do colo e se envolve com prazer numa atividade que escolhe. Na hora da saída, não quer ir embora. O limite é dado, os pais não entendem, mas elas querem ficar brincando. A chave nos é dada de mão beijada: a criança passa a manipular tudo e todos, a convivência com a família torna-se indesejável, e a criança, boa, saudável, brincalhona, torna-se tirana.
Partilhar desde a mais tenra idade não é só aprender a dividir e dar aos necessitados o que sobra de brinquedos, roupas e leite, mas, sim, saber olhar e sentir o outro sem discriminação, dar um bom dia, um sorriso. São atitudes que não custam nada, mas que têm um preço inestimável e poderoso não só para quem as recebe. As crianças captam dos pais a atitude de partilhar o convívio social, atualmente em baixa, principalmente nas grandes metrópoles. Vale também partilhar o universo do trabalho, levando para a casa sobra de papéis, onde desenho, pintura ou recortes são feitos em companhia dos filhos -conversando, as crianças se inteiram do dia-a-dia das famílias laboriosas.
Vi maquetes montadas com as chamadas "reciclagens" construídas nos fins de semana com esses preciosos restos de trabalho adulto: retalhos de fábrica, caixas de embalagem, papéis, jornais, revistas etc. O dia passa rápido, a alegria se estampa no rosto de cada um, e a harmonia da casa fica mais econômica para os que não possuem muito, e os que têm capitalizam a convivência, a criatividade -além disso, as distâncias de idade se aproximam.
Como é bom nós, adultos, sentirmos brotar de novo a nossa criança partilhando com o ser que geramos. Embora muitas vezes essa criança adulta, pela sua história de vida, tenha lembranças tristes, dolorosas, é de grande valia que ela renasça!
As crianças estão na idade da imitação dos ídolos -o pai e a mãe-, que crescem dentro delas como um espelho para o aprendizado da partilha com muita alegria.


THEREZA PAGANI ("Therezita") é educadora e diretora da Tearte, escola de educação infantil; e-mail: tepagani@uol.com.br


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