São Paulo, quinta-feira, 22 de abril de 2004
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outras idéias

Até os animais de estimação que serão adquiridos durante o casamento têm a custódia determinada antes do matrimônio por meio de um contrato

Casamento brasileiro x casamento americano

michael kepp

A maioria dos americanos, que encaram o casamento como um relacionamento legalizado, espantam-se com o fato de que os brasileiros se consideram casados simplesmente porque vivem juntos. Eu, que deixei os Estados Unidos para viver aqui 21 anos atrás e sou casado com uma brasileira, já tentei explicar aos conhecidos no meu país de origem que as pessoas daqui levam o casamento a sério -mas não obtive sucesso.
Digo-lhes que os brasileiros não precisam legalizar um casamento para legitimá-lo e que a palavra "casamento" deriva da palavra "casa", o que significa que casamento consiste em viver sob o mesmo teto e compartilhar a cama. Um amigo de Nova York me disse que, "se eu aplicasse essa definição aos relacionamentos que tive, já teria sido casado seis vezes".
Isso se deve ao fato de que os americanos encaram viver juntos principalmente como uma espécie de experiência de laboratório para decidir se devem prosseguir na direção de um relacionamento mais sério -o casamento. Em sua sociedade, em que definições jurídicas têm muita importância, estar casado significa assinar um contrato. Só assim os americanos consideram ter "tied the knot", expressão cuja tradução, "atar o nó", conota mais uma sensação de mútuo aprisionamento do que um sentimento de mútua felicidade.
Porque é possível desatar os nós, nos Estados Unidos, país onde os ritos legais levam a processos litigiosos, cerca de metade dos casamentos termina em divórcio. Por isso alguns americanos optam por contratos pré-nupciais a fim de proteger suas propriedades. Até os animais de estimação que serão adquiridos durante o casamento têm a custódia determinada antes do matrimônio por meio de um contrato chamado "pet pre nup". Em alguns Estados americanos, os gays agora estão se casando, e não como um ritual de celebração, mas, sim, para desfrutar dos mesmos direitos legais que beneficiam os casais heterossexuais, incluindo o direito ao divórcio.
Essa visão de mundo legalista ajuda a explicar por que os americanos não conseguem encarar a vida em conjunto como um casamento. Em um artigo publicado recentemente na revista "New Yorker", uma escritora descreveu o homem com quem viveu durante sete anos como seu "amante". Se um brasileiro lesse o artigo, ficaria com a impressão de que os americanos encaram viver juntos de maneira tão leviana quanto os brasileiros encaram as pessoas com quem dormem quanto não estão dormindo com seus cônjuges.
Os ianques não-casados que assumem um compromisso mais sério com a pessoa com quem vivem, às vezes, a definem como "parceiro/a", o que gera a (falsa) impressão de que assinaram um contrato cujo cumprimento não é compulsório.
Meus amigos americanos ficaram muito surpresos quando eu lhes disse que havia me "casado" com uma brasileira. E, evidentemente, não me levaram a sério quando lhes contei que não havia assinado um contrato. Só mudaram de opinião muito mais tarde, porque se tornou difícil classificar minha união de 11 anos como uma experiência de laboratório.
O motivo para que eu e minha mulher não legalizássemos nossa união é semelhante ao da maioria dos meus amigos brasileiros casados. Se viver juntos se torna algo duradouro, qual a necessidade de incluir o Judiciário na equação? Alguns americanos sentem a mesma coisa. Mas eles, como eu e minha mulher, são em geral remanescentes do idealismo dos anos 60 e acreditam que o casamento seja definido pela comunhão de dois corações, e não por um consentimento do Estado.
Mas, durante o nosso primeiro ano de casamento, um amigo americano me acusou de "brincar de casamento em um país que permite que as pessoas ajam assim". A raiva que exibi como resultado desse ataque injustificado me forçou a compreender o quanto eu entregara meu coração a essa brasileira. Mas o momento exato em que comecei a me sentir casado é difícil de definir, porque, para mim, a união é um processo, e não um ato.
Os americanos insistem em marcar o início desse processo por um ato jurídico. Os brasileiros compreendem que, embora o casamento, como o divórcio, possa ser definido por esses atos, os inícios e fins contratuais são a parte relativamente fácil de empreender. O que é difícil de fazer funcionar, em qualquer casamento, é o meio da história.


MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 21 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro", (ed. Record); site: www.michaelkepp.com.br


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