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São Paulo, quinta-feira, 24 de abril de 2003
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Os pais devem ficar atentos às alterações no comportamento que envolvem a alimentação; o diagnóstico precoce facilita a cura

Hábito sinaliza distúrbio alimentar na infância

Marcelo Barabani/Folha Imagem
Apesar de ter peso e estatura normais, M., 12, sentia-se gorda e perdeu 18 kg


DORIS FLEURY
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Ela estava convicta de que tudo engordava -até água. Na busca por um corpo perfeito, B. parou de comer. Os pais, alarmados, procuraram um serviço especializado. Diagnóstico: um caso típico de anorexia nervosa. O que seria mais um caso de distúrbio alimentar, problema que atinge de 0,5% a 1% da população em geral, ganha outra dimensão por causa da idade da paciente. B. tem apenas dez anos.
Crianças e pré-adolescentes com até 12 anos começam a engrossar as estatísticas de transtornos alimentares. Quando foi fundado, em 1992, o Ambulim (Ambulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (SP), atendia somente pacientes maiores de 18 anos. Foi a própria demanda que fez com que, em 2001, fosse criado o "braço juvenil" do ambulatório, o Protad (Programa de Atendimento, Ensino e Pesquisa em Transtornos Alimentares na Infância e Adolescência). "A maior incidência dos distúrbios alimentares é dos 12 aos 16 anos", afirma Ana Paula Gonzaga, psicóloga do programa. Os pacientes mais novos, com até 12 anos, respondem por 20% dos atendimentos no Protad. "Existe uma briga feia para saber se isso corresponde a um aumento real do problema, atingindo uma faixa mais jovem, ou se o que está acontecendo é apenas um diagnóstico mais precoce dos distúrbios, motivado até pela exposição do problema pela mídia", diz a psiquiatra Vanessa Pinzon, que também trabalha no Protad. O fenômeno também está sendo observado em outros países. "Por exemplo, no Reino Unido, o serviço do doutor Brian Lask, um dos maiores especialistas no assunto do mundo, já trata de crianças desde os oito anos", afirma Pinzon. Um estudo da Clínica Mayo (EUA) mostrou que, de 600 pacientes com anorexia nervosa ali atendidos, 3% ainda não haviam chegado à puberdade.


"Você vê crianças preocupadíssimas com o peso, que controlam calorias e negam o prazer de comer. Deixam de ser crianças, de comer como crianças"
Bruno Geloneze, endocrinologista da Unicamp

Há quem tenha uma visão sombria do problema. "A anorexia em crianças tende a aumentar junto com a neurose das dietas", afirma Rejane Sbrissa, psicóloga especializada em transtornos alimentares e obesidade. "Aos 11, 12 anos, uma menina já se preocupa em paquerar ou "ficar". A preocupação com a aparência começa mais cedo. E, para piorar, hoje em dia o normal é estar sempre de dieta." Endocrinologistas mais atentos começam a notar comportamentos esquisitos nas crianças que atendem. "Você vê crianças preocupadíssimas com o peso, que controlam calorias e negam o prazer de comer. Na minha opinião, elas são casos "borderline", ou seja, ficam a um passo de comportamentos como a bulimia. Além disso, deixam de ser crianças, de comer como crianças", diz Bruno Geloneze, endocrinologista da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Para Bacy Fleitlich Bilyk, coordenadora do Protad, a chegada das crianças e pré-adolescentes ao programa tem um aspecto positivo. "Nos últimos anos, a mortalidade decorrente da anorexia baixou de 30% para 15% por causa da melhora no tratamento e também por causa do diagnóstico precoce. Tratar distúrbios alimentares em crianças pode prevenir o problema na adolescência."


"A anorexia em crianças tende a aumentar junto com a neurose das dietas. Aos 11, 12 anos, uma menina já se preocupa em paquerar ou "ficar". "
Rejane Sbrissa, psicóloga



"Nos últimos anos, a mortalidade decorrente da anorexia baixou de 30% para 15% por causa da melhora no tratamento e também por causa do diagnóstico precoce"
Bacy Fleitlich Bilyk, coordenadora do Protad

Por exemplo, uma adolescente de 14 anos que chega para ser tratada de anorexia pode estar desenvolvendo a doença desde os dez anos. Mas, depois de tanto tempo, fica muito mais difícil tratá-la. "A regra, nos distúrbios alimentares, é que, quanto mais se demora para procurar tratamento, pior fica a doença", diz Bilyk.

Mudança de hábito
Os primeiros sinais de distúrbio alimentar na infância não são os quilos perdidos, mas sim o comportamento da criança. A coordenadora do Protad diz que os pais devem ficar de olho em qualquer mudança brusca nos hábitos alimentares seguida de emagrecimento, ainda que pequeno (leia mais sobre essas alterações na pág. 8).
Assim como acontece com os adolescentes, o tratamento de distúrbios alimentares na infância deve ser multidisciplinar. Endocrinologistas, psiquiatras, psicólogos, psicanalistas e nutricionistas fazem parte da equipe do Protad. E a terapia familiar é importantíssima.
"Tentamos envolver a família, mas sem culpá-la", explica Pinzon. "Explicamos que a etiologia, ou seja, a origem da doença, está longe de ser responsabilidade exclusiva dos pais." Nesse processo, a família tem algumas tarefas desgastantes pela frente. A mais difícil delas é o cumprimento dos acordos que a criança faz com os terapeutas: experimentar um alimento diferente a cada dia, por exemplo. "Não tem jeito, o pai vai ter de sentar na frente da criança e fiscalizar a ingestão daquele alimento. E isso não é fácil: eu mesma já levei muita sopa na cara", afirma a coordenadora do Protad.
Outra parte importante do tratamento é explicar à criança alguns fatos simples da biologia, como a necessidade do aumento do peso para o crescimento ou o verdadeiro valor calórico dos alimentos. Esses métodos fazem parte da chamada terapia cognitivo-comportamental, considerada fundamental para a cura.
Além da anorexia, outros distúrbios alimentares rondam a infância e afetam meninas e garotos (leia mais na pág. 8). O risco maior, porém, é a anorexia, que atinge principalmente garotas antes ou depois da primeira menstruação. "Muitas garotas encaram a mudança do corpo infantil como uma perda", diz Ana Paula Gonzaga. "Uma paciente colocou um letreiro em cima da cama: "Aqui jaz Fulana, nascida em 1988 e morta em 2000". Naturalmente eu lhe perguntei o que aconteceu em 2000. "Minha primeira menstruação", ela respondeu."


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