São Paulo, quinta-feira, 24 de junho de 2004
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foco nele

Médico cuida de quem tem data para morrer

Marcelo Barabani/Folha Imagem
O médico Marco Tullio Figueiredo


ANA PAULA DE OLIVEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Os recursos da medicina para a cura do paciente foram esgotados. É nesse momento delicado que atua o grupo liderado pelo médico Marco Tullio de Assis de Figueiredo, 79, cujo trabalho é ajudar pessoas em estado terminal a morrer com dignidade e tranqüilidade.
Figueiredo é criador e chefe do Ambulatório de Cuidados Paliativos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Como toda a sua equipe, trabalha voluntariamente. Apesar de não ser reconhecida como especialidade médica no Brasil, a área já é uma disciplina na Unifesp, da qual Figueiredo é professor. "As pessoas ainda confundem nosso trabalho. Acham que cuidado paliativo é usar "Band Aid"." Leia a entrevista abaixo.
 

Folha - O que é cuidado paliativo?
Marco Tullio de Assis Figueiredo -
É uma área que procura cuidar do ser humano em seu sofrimento global, isto é, do corpo, da mente, do espírito e do social. A medicina por si só é insuficiente para controlar toda essa gama de sofrimentos. Para tanto, existe a atuação interdependente de profissionais que controlam o sofrimento do corpo -médicos, enfermeiras-, da mente -psicólogos, psiquiatras- e do espírito -pastor, rabino, de acordo com a crença do doente. A atenção e o cuidado também são dirigidos à família, que é acompanhada também na fase do luto. Essencial para o bom desempenho da equipe é o conhecimento profundo do processo do morrer.

Folha - Como surgiu essa área?
Figueiredo -
Surgiu no Brasil em 1983. No mundo, foi ressuscitada na Inglaterra, em 1960, e reforçada pelo nascimento da tanatologia (estudo da morte) e pelo trabalho pioneiro da psiquiatra suíça Elizabeth Kübler-Ross, que publicou um monumental trabalho, "Sobre a Morte e o Morrer", leitura obrigatória para todos os profissionais de saúde e até para todas as pessoas, pois a morte é a vida.

Folha - Como é a rotina de atendimento?
Figueiredo -
Como os pacientes que necessitam de cuidado paliativo são terminais, praticamente não há mais necessidade de realização de exames laboratoriais, radiológicos ou de procedimentos invasivos. Em nosso ambulatório, em quatro anos, só tivemos necessidade de solicitar dois exames. Não usamos no ambulatório nem nas visitas domiciliares aventais brancos, porque lembram ao paciente e à família o ambiente hospitalar, relembrando sofrimento e solidão.

Folha - Quem trabalha no ambulatório?
Figueiredo -
Os profissionais são todos voluntários. Eles só deixam o ambulatório premidos pela necessidade de ganhar o pão de cada dia, mas levam consigo -e para sempre- uma satisfação íntima de terem servido ao próximo com amor desinteressado e eficiente, de terem conhecido o processo de morrer e de terem trabalhado a sua própria morte, o que é uma lição de vida imorredoura.

Folha - Como são as visitas aos pacientes?
Figueiredo -
Elas são a nossa grande arma de humanidade. Aprendemos mais com o paciente e com a família do que eles conosco. A visita em domicílio é tratada como uma visita social de amigos, apesar das tarefas profissionais desempenhadas. Nossa disponibilidade para atendê-los é de 24 horas por dia durante o ano todo. Devido à característica voluntária da equipe, não podemos aceitar mais que quatro doentes novos por mês. A média de permanência dos pacientes conosco, até a morte, é de dois meses e meio.

Folha - Como o senhor explica a morte ao paciente e à família?
Figueiredo -
Durante o desenrolar das fases finais da vida, eu mantenho conversas com a família, explicando-lhes as fases do processo do morrer, que são o alheamento, a recusa de alimentos e de líqüidos, as alterações de coloração da pele, as fases de confusão mental, os falsos períodos de melhora, o esfriamento do corpo, a respiração irregular, a dificuldade em perceber o pulso, a ausência de evacuação, a acentuada diminuição da diurese, o olhar baço, a desagradável respiração estertorosa e a imobilidade final.

Folha - Como o paciente terminal deve ser tratado?
Figueiredo -
Enfatizo que não deve ser deixado sozinho. Ao contrário, ele deve ser tocado, acariciado, abraçado e beijado. É o momento de reunião da família, nem nossa equipe tem lugar ao lado do leito nessa hora. É a hora do perdão mútuo, de apagar mágoas e desentendimentos. O paciente deve ser tratado com dignidade e respeito até o fim. Antecipadamente, ensinamos à família como providenciar atestado de óbito, sepultamento.

Folha - Quais os erros mais freqüentes de médicos e familiares?
Figueiredo -
O maior erro é esconderem do doente a verdade. A mentira piedosa é, na realidade, uma falácia. Não escondemos a verdade nem da família nem do paciente, mas temos a nossa habilidade de nos comunicarmos com sinceridade, firmeza e solidariedade. Não recusamos o uso de terapias alternativas, desde que elas não causem mal ao paciente. O paciente terminal não deve ser um objeto de experiências nem mesmo científicas. Quando o caso permite, incentiva-se o paciente a realizar o que ele deseja. Por exemplo, se ele manifestar o desejo de ingerir uma bebida alcoólica ou de fumar um cigarro, isso lhe é permitido, pois não será na sua finitude que esses desejos lhe causarão maior dano. O importante é se esses desejos têm para ele um significado de melhor qualidade de vida.


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