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foco nele
Médico cuida de quem tem data para morrer
Marcelo Barabani/Folha Imagem
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O médico Marco Tullio Figueiredo |
ANA PAULA DE OLIVEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL
Os recursos da medicina para a cura do
paciente foram esgotados. É nesse momento delicado que atua o grupo liderado pelo médico Marco Tullio de Assis de
Figueiredo, 79, cujo trabalho é ajudar
pessoas em estado terminal a morrer
com dignidade e tranqüilidade.
Figueiredo é criador e chefe do Ambulatório de Cuidados Paliativos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Como toda a sua equipe, trabalha voluntariamente. Apesar de não ser reconhecida como especialidade médica no Brasil,
a área já é uma disciplina na Unifesp, da
qual Figueiredo é professor. "As pessoas
ainda confundem nosso trabalho.
Acham que cuidado paliativo é usar
"Band Aid"." Leia a entrevista abaixo.
Folha - O que é cuidado paliativo?
Marco Tullio de Assis Figueiredo - É uma
área que procura cuidar do ser humano
em seu sofrimento global, isto é, do corpo, da mente, do espírito e do social. A
medicina por si só é insuficiente para
controlar toda essa gama de sofrimentos.
Para tanto, existe a atuação interdependente de profissionais que controlam o
sofrimento do corpo -médicos, enfermeiras-, da mente -psicólogos, psiquiatras- e do espírito -pastor, rabino,
de acordo com a crença do doente. A
atenção e o cuidado também são dirigidos à família, que é acompanhada também na fase do luto. Essencial para o bom
desempenho da equipe é o conhecimento profundo do processo do morrer.
Folha - Como surgiu essa área?
Figueiredo - Surgiu no Brasil em 1983.
No mundo, foi ressuscitada na Inglaterra,
em 1960, e reforçada pelo nascimento da
tanatologia (estudo da morte) e pelo trabalho pioneiro da psiquiatra suíça Elizabeth Kübler-Ross, que publicou um monumental trabalho, "Sobre a Morte e o
Morrer", leitura obrigatória para todos
os profissionais de saúde e até para todas
as pessoas, pois a morte é a vida.
Folha - Como é a rotina de atendimento?
Figueiredo - Como os pacientes que necessitam de cuidado paliativo são terminais, praticamente não há mais necessidade de realização de exames laboratoriais, radiológicos ou de procedimentos
invasivos. Em nosso ambulatório, em
quatro anos, só tivemos necessidade de
solicitar dois exames. Não usamos no
ambulatório nem nas visitas domiciliares
aventais brancos, porque lembram ao
paciente e à família o ambiente hospitalar, relembrando sofrimento e solidão.
Folha - Quem trabalha no ambulatório?
Figueiredo - Os profissionais são todos
voluntários. Eles só deixam o ambulatório premidos pela necessidade de ganhar
o pão de cada dia, mas levam consigo -e
para sempre- uma satisfação íntima de
terem servido ao próximo com amor desinteressado e eficiente, de terem conhecido o processo de morrer e de terem trabalhado a sua própria morte, o que é uma
lição de vida imorredoura.
Folha - Como são as visitas aos pacientes?
Figueiredo - Elas são a nossa grande arma de humanidade. Aprendemos mais
com o paciente e com a família do que
eles conosco. A visita em domicílio é tratada como uma visita social de amigos,
apesar das tarefas profissionais desempenhadas. Nossa disponibilidade para atendê-los é de 24 horas por dia durante o ano
todo. Devido à característica voluntária
da equipe, não podemos aceitar mais que
quatro doentes novos por mês. A média
de permanência dos pacientes conosco,
até a morte, é de dois meses e meio.
Folha - Como o senhor explica a morte ao
paciente e à família?
Figueiredo - Durante o desenrolar das
fases finais da vida, eu mantenho conversas com a família, explicando-lhes as fases do processo do morrer, que são o
alheamento, a recusa de alimentos e de líqüidos, as alterações de coloração da pele, as fases de confusão mental, os falsos
períodos de melhora, o esfriamento do
corpo, a respiração irregular, a dificuldade em perceber o pulso, a ausência de
evacuação, a acentuada diminuição da
diurese, o olhar baço, a desagradável respiração estertorosa e a imobilidade final.
Folha - Como o paciente terminal deve
ser tratado?
Figueiredo - Enfatizo que não deve ser
deixado sozinho. Ao contrário, ele deve
ser tocado, acariciado, abraçado e beijado. É o momento de reunião da família,
nem nossa equipe tem lugar ao lado do
leito nessa hora. É a hora do perdão mútuo, de apagar mágoas e desentendimentos. O paciente deve ser tratado com dignidade e respeito até o fim. Antecipadamente, ensinamos à família como providenciar atestado de óbito, sepultamento.
Folha - Quais os erros mais freqüentes de
médicos e familiares?
Figueiredo - O maior erro é esconderem
do doente a verdade. A mentira piedosa
é, na realidade, uma falácia. Não escondemos a verdade nem da família nem do
paciente, mas temos a nossa habilidade
de nos comunicarmos com sinceridade,
firmeza e solidariedade. Não recusamos
o uso de terapias alternativas, desde que
elas não causem mal ao paciente. O paciente terminal não deve ser um objeto
de experiências nem mesmo científicas.
Quando o caso permite, incentiva-se o
paciente a realizar o que ele deseja. Por
exemplo, se ele manifestar o desejo de ingerir uma bebida alcoólica ou de fumar
um cigarro, isso lhe é permitido, pois não
será na sua finitude que esses desejos lhe
causarão maior dano. O importante é se
esses desejos têm para ele um significado
de melhor qualidade de vida.
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