São Paulo, quinta-feira, 24 de junho de 2004
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outras idéias

michael kepp

Rá, ré, ri, ró, rua!

Pelo fato de eu, um veterano de 54 anos nessa estrada, ter sido demitido uma porção de vezes, sei como é duro se reerguer desses golpes

Ser demitido, assim como enfrentar qualquer mudança, fica cada vez mais difícil com a idade. Mas não é só porque as empresas valorizam mais a juventude do que a experiência. Fica cada vez mais difícil porque aquele descarte -aquela rejeição, aquela sensação de que você se tornou inútil e sem valor- representa mais um golpe que você vai ter de somar a todas as porradas que acumulou com o passar das décadas, sejam elas pessoais ou profissionais.
Enquanto se acumulam como antigas camadas estriadas de rocha sedimentar, essas porradas não criam calo nem carapaça que nos tornem mais resistentes aos futuros golpes. Envelhecer -entender que há mais estrada para trás do que à nossa frente- deixa-nos frágeis e vulneráveis. Por isso, quando se acumulam ao longo dessa parte reveladora da viagem, essas porradas punem mais, física e psicologicamente.
Pelo fato de eu, um veterano de 54 anos nessa estrada, ter sido demitido uma porção de vezes, sei como é duro se reerguer desses golpes com o passar dos anos. Dizem que a idade traz sabedoria. Mas, não importando quantos aniversários tivemos, nunca deixamos de nos surpreender não só com a demissão mas com a facilidade com que pessoas aparentemente sensíveis, sem aviso ou justa causa, mandam a gente para a rua.
A dor dessa surpresa me faz lembrar de lições aprendidas e depois esquecidas, talvez por serem doídas demais para guardar: 1) que ser querido e apreciado no trabalho nunca é proteção suficiente contra os objetivos frios de uma empresa; 2) que basta um superior poderoso não ir com a sua cara para você correr o risco de ser demitido; 3) que a dedicação e a lealdade à empresa nunca são correspondidas. Portanto nunca dê 100% de si a um empregador. Se der, ele vai passar a esperar 110%.
Recentemente, um amigo se permitiu esquecer essas lições porque estava na empresa havia 15 anos, ainda trabalhava com eficiência e estava perto de se aposentar quando foi cortado. A guilhotina foi acionada apenas porque, neste mercado de trabalho, cada vez mais globalizado, terceirizado e dedicado ao corte de custos, era mais barato contratar alguém mais jovem, o que não o fez se sentir menos decapitado.
Eu pude sentir onde lhe apertava o sapato, não só porque perdi empregos para pessoas mais jovens mas também porque fui um jovem a quem ofereceram o emprego alheio. Logo depois de me mudar para o Brasil, uma agência de notícias queria que eu passasse por um período de experiência para provar que eu superaria um jornalista idoso, um senhor que eu conhecia e que estivera na empresa por muitos anos. Perguntei a mim mesmo: "Se eu lhe tirar o emprego e ele morrer em breve, como vou me sentir?". E disse a eles: "Não posso tirar o emprego de um senhor".
Ele manteve o emprego e morreu menos de um ano depois, enquanto escrevia um texto jornalístico. Quando eu liguei para a agência para contar, queriam provas de sua morte antes de me oferecer seu emprego. Enviei por fax o obituário publicado no jornal, que tomou o lugar do meu currículo. Então, dez anos depois, a agência ofereceu meu emprego a alguém mais jovem que, como meu chefe me disse, "tinha mais potencial".
Apesar de carregar as feridas deixadas pela realidade dura do mercado de trabalho, eu não me incapacitei nem me tornei um pessimista. Apesar de ser uma perda, a demissão também pode ser um ganho. Pode levar a empregos melhores, profissões mais interessantes e a outras mudanças até mais dramáticas de direção.
Uma amiga brasileira de 58 anos, que sempre foi professora, perdeu seu último emprego há vários anos e caiu em depressão. Por causa da idade e de todas as porradas profissionais acumuladas, ela sabia que não teria a força psicológica e o masoquismo necessário para, mais uma vez, encarar a crueldade do mercado de trabalho.
Mas, pelo fato de o marido ter o suficiente para manter os dois financeiramente, ela começou a fazer trabalho voluntário, alfabetizando crianças de um orfanato. Seu maior temor profissional, o de que não teria mais nada a aprender ou a dar e, portanto, nada mais a receber, desapareceu, assim como a sua depressão.


MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 21 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record); site: www.michaelkepp.com.br


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