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São Paulo, quinta-feira, 24 de julho de 2003
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outras idéias paulo tatit

Música é informalidade, cooperação, intuição, ritual... tudo que não combina com um programa lógico e objetivo que tem como horizonte o exame vestibular

Uma caminhada musical

Percorrer o Brasil pelo caminho da música é tão bonito quanto percorrer as trilhas dos parques nacionais. São lugares lindos, calmos, onde a gente tem a impressão muito agradável de viver num país com as questões básicas resolvidas.
A música popular no Brasil também tem uma trilha fluida, natural e se desenvolve com impulso próprio e sob quaisquer condições políticas e econômicas. Vai longe até mesmo sem escolas que ensinem como fazê-la. As canções surgem de uma necessidade interna dos cancionistas -aquelas pessoas que compõem, cantam e tocam música popular e que, por sua vez, encontram respaldo num público que aprecia ou mesmo "não pode viver sem música".
Música popular é talvez a forma de arte que melhor expressa a totalidade da nossa cultura e, por isso mesmo, possui um mercado natural, com suas ofertas e demandas razoavelmente bem equilibradas. Por isso tudo é interessante pensar na dificuldade do ensino formal das nossas escolas para encontrar uma maneira de encaixar música popular no currículo. Talvez essa "disciplina" não combine com a estrutura centralizadora e hierárquica das escolas. Música é informalidade, liberdade de experimentar, cooperação, tempo ocioso, linguagem não-verbal, intuição, ritual... tudo que não combina com um programa lógico e objetivo que tem como horizonte o exame vestibular. Música combina mais com a hora do recreio, quando se dá o convívio entre os amigos.
Mas música combina também com busca de conhecimento e vontade de saber. Adorei ler que Paul McCartney e George Harrison pegaram um ônibus e atravessaram sua cidade para encontrar um fulano que poderia lhes ensinar o acorde de si com sétima. Era mais ou menos assim que acontecia com os músicos da minha geração, que aprenderam a tocar e a cantar durante o período de ginásio e colégio: a música nos mobilizava muito, e íamos, por vontade própria, atrás do como aprender. Íamos atrás de um mestre, alguém que admirávamos por causa de seu conhecimento e de suas habilidades técnicas. Esse músico mais experiente -ou que apenas sabia um pouquinho mais que a gente- sempre nos proporcionava algum avanço, com seu jeito próprio de tocar, cantar, compor e com suas meias palavras sobre música, nada além do "artesanato" sonoro por ele mesmo concebido ao longo da vida.
Mas eu estava dizendo como é bonito percorrer o Brasil pelo caminho da música, porque quando a compositora Sandra Peres e eu fizemos essa viagem, entre 1998 e 2001, para preparar o CD "Canções do Brasil", do selo Palavra Cantada, tivemos oportunidade de gravar muitas crianças ou grupos delas que, além de tocarem e cantarem muito bem, tinham de quebra o conhecimento da herança musical do seu lugar. Notamos isso tanto pelos atributos musicais exibidos (acentuação do ritmo, inflexões melódicas e dança) como pela maneira natural e simples com que nos explicavam tudo o que estava em torno de seu gesto musical: a história, as lendas e o tratamento atual que davam àquela raiz.
Pudemos observar nessas crianças um enorme entusiasmo pela prática musical e uma inesperada desenvoltura na transmissão daqueles conhecimentos. Ficávamos emocionados com o respeito que mantinham entre si no convívio diário e com o orgulho que sentiam do trabalho apresentado. Orgulho compartilhado com seus mestres. Mestres verdadeiros. Mestres que tomaram para si a tarefa de encaminhar crianças que, em outros lugares, teriam todas as credenciais para ingressar na marginalidade. Crianças pobres, com problemas sérios em casa e na escola. Crianças sem escola. Crianças sem família. Enfim, crianças deste Brasil, que não deixa de crescer e prosperar, apesar de tudo.
São esses mestres que apresentam às crianças a música do lugar. Pode ser maracatu, bumba-meu-boi, congada, jongo, samba, capoeira, o que for. O importante é apelar para os poderes que a música tem de organizar o caos social, apoiar crianças órfãs e ritualizar o cotidiano, enfim, dar sentido à vida. A música tem esses poderes. Ela vai direto ao assunto: os ritmos dos tambores dão um chão firme para pisar, as melodias do canto trazem a emoção, a letra transforma em poesia as coisas banais do cotidiano. A harmonia das escalas, o arranjo instrumental, a dança, tudo é motivo para que as crianças passem horas a fio num exercício obstinado de aprimoramento pessoal. E, o que é importante, muitas vezes sós, consigo mesmas, concentradas, corpo e alma pulsando juntos para saltar do tempo do relógio para o tempo musical, em que tudo é mais calmo.


PAULO TATIT é músico e produtor do selo Palavra Cantada, especializado em música para criança; e-mail: ptatit@palavracantada.com.br


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