São Paulo, quinta-feira, 25 de março de 2010
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O fim da negação

Em 1985, o cabeleireiro Hugo Hagström tinha 24 anos e uma DST (doença sexualmente transmissível) difícil de curar. Seus amigos que voltavam do exterior traziam notícias da "peste gay". Hugo uniu uma informação a outra e achou prudente fazer o exame. "Disseram que eu tinha mais seis meses de vida. Saí desnorteado e passei três anos tentando negar a doença, porque não tinha sintomas", recorda-se.
Por mais de uma década, viveu à espera da morte, intercalando fases de adesão ao tratamento com outras de abandono, até que essa atitude cobrou seu preço. "Não conseguia me alimentar e entrei em estado terminal, mas, por sorte, foi quando surgiu o coquetel."
Após quatro meses de internação, saiu do hospital sem falar e precisou de um ano para voltar a andar. Um descolamento de retina, causado por citomegalovírus, tirou-lhe parte da visão -até hoje, enxerga muito mal. Nunca mais largou o coquetel e, depois de enfrentar seis anos de efeitos colaterais, como uma diarreia acentuada, vive sem eles.
Também é mais tranquilo em relação à sua condição. "Quase perdi a vida e, depois que a ganhei de volta, vi que o HIV faz parte dela. Não tenho mais vontade nem motivo para negar isso."
Os períodos cíclicos de depressão também se tornaram mais leves. "Redescobri o rumo, o privilégio de poder continuar a viver."
No auge da juventude, Hugo chegou a passar um ano inteiro "assexuado", como diz. Para os parceiros eventuais, não revelou que tinha o vírus. Enquanto a aparência e o estado clínico permitiram, continuou a trabalhar. No fim da década de 90, depois da internação, pediu a aposentadoria.
Entre a doença e o retiro, contou com o apoio financeiro de parentes. "Sou uma exceção daquele tempo, porque as pessoas eram abandonadas pela família, pelo trabalho, e nada disso aconteceu comigo. Meu autopreconceito é que foi muito forte. Eu já era rotulado por ser homossexual, e ser rotulado também de portador de "câncer gay" era demais."
Hugo acha que esse panorama não mudou completamente. "As pessoas que sabem de um heterossexual portador de HIV sempre questionam se, em algum momento, ele não foi homossexual. A orientação sexual sempre permeia pelo lado negativo essa questão."
Na organização onde trabalha voluntariamente há mais de uma década dando apoio a soropositivos, ainda ouve histórias como as de 25 anos atrás. "Tivemos conquistas, mas há hoje um discurso muito mentiroso, porque não pega bem falar que Aids é um nojo. Mas continuo ouvindo relatos de gente que separa copos, que a família manda embora."
O infectologista Esper Kallas faz coro. "Melhorou, mas ainda existe preconceito. A infecção eclodiu principalmente em homens que fazem sexo com homens e em usuários de drogas. Isso trouxe uma reação social muito intensa, que tentamos apagar até hoje."


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