|
Texto Anterior | Índice
outras idéias dulce critelli
Não é Afrodite quem reina na cozinha, mas Deméter, a deusa da fertilidade, do cuidado dos outros e do cuidado para com a vida
O simples milagre da vida
Houve uma época em que meu fogão tinha apenas duas
bocas. Sem forno. Eu tinha também um microondas.
Não cozinhava, evidentemente, porque não tinha tempo para isso. Vida moderna, mulher moderna, preocupada
com a velocidade e ocupada com coisas mais importantes.
Mudei-me, depois, para um apartamento cuja cozinha era
grande, ensolarada, gostosa de estar nela. O nicho na bancada
era para um fogão de seis bocas. Instalei um. Tudo pronto, o
cenário me convidou a cozinhar. Aceitei o primeiro convite, o
segundo e, quando dei por mim, já me habituara a preparar a
comida.
A alquimia da transformação dos alimentos no fogo tem um
espírito. E esse espírito começou a ocupar a minha casa,
criando aconchego e a sensação de uma casa com vida própria. Quando se usa um microondas, não se cozinha. A relação que temos com o alimento é bastante impessoal. Na comida congelada, o sabor já vem decidido e é o mesmo para todos. Os cheiros ficam embutidos. O tempo é programado.
Mas, quando se trata de usar o fogão, nossos sentidos são todos instigados e nos envolvem no cuidado do alimento, no
cuidado do que nos alimenta. Obrigam-nos à proximidade e à
intimidade com tudo com que lidamos. Cozinhamos com os
olhos -que comparam e procuram cores, movimentos, texturas- , com os ouvidos -que acompanham os sons da fervura, da cebola fritando-, com as mãos -que descobrem as
consistências e as temperaturas-, com a boca e o nariz -que
orientam na dosagem dos temperos e no ponto do aprontamento. Cozinhamos com a imaginação e com curiosidade. E o
tempo não é mais a duração fria e programada controlada pelos timers e relógios nem o da nossa mera expectativa. É um
tempo de espera, em que nos empenhamos ativamente na
preparação de um acontecimento. É um advento.
Redescobri as sensações e uma sensualidade mais primordial. Reencontrei uma outra feminilidade em mim, diferente,
por exemplo, daquela que se desenvolve diante do espelho. A
preocupação estética com a aparência (a de Afrodite), quando a medida é apenas a do espelho, se serve para nos revelar,
serve também para nos adequar aos padrões de moda e beleza
que vêm de fora, do que é comum a todos. A sensualidade que
vem do cozinhar, no entanto, não tem tantos modelos externos. A medida parece brotar de nós mesmos, já que nossas
sensações são tão exclusivas, intransmissíveis, incomparáveis. Cozinhar é um ato que nos faz querer superar o padrão
comum. É um gesto para o qual importa o segredo, o toque
pessoal que nos singulariza. Não nos igualamos a ninguém,
nem a nós mesmos, pela impossibilidade de repetir o mesmo
exato sabor para a mesma receita.
Quando se cozinha, cuida-se do alimento, do prazer de comer, mas também da saúde, do crescimento, do bem-estar
-tanto próprio quanto dos outros. Cuida-se dos humores e
dos amores. Não é Afrodite quem reina na cozinha, mas Deméter, a deusa da fertilidade, do cuidado dos outros e do cuidado para com a vida. Deméter é a mulher que a sociedade
atual desvaloriza, porque ela não trabalha fora de casa, não
cuida dos negócios, não se volta para o conhecimento nem é
uma sex model.
Deméter é a mulher minimizada, sobretudo porque ela cuida da vida. A vida, que na nossa sociedade mercantilista não
tem valor nenhum. A vida, que vale hoje menos que um par de
tênis, menos que qualquer outro objeto barato.
Talvez por isso mesmo o gesto cotidiano de cozinhar equivalha quase a uma revolução: nele vale sobretudo a vida mesma. No gesto cotidiano de cozinhar acontece o simples milagre da vida.
DULCE CRITELLI, professora de filosofia da PUC-SP, é autora dos livros "Educação e Dominação
Cultural" e "Analítica de Sentido!" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos
da Condição Humana; e-mail: dulcecritelli@existentia-br.com
Texto Anterior: Como se defender se a lembrança falhar Índice
|