São Paulo, quinta-feira, 26 de janeiro de 2006
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Outras idéias

Revisitando o Brasil

Para o espanto de familiares e amigos, cancelei minha passagem de avião para fazer o mesmo trajeto por terra -de carro.
- O quê? Você vai levar dois dias no que de avião leva menos de duas horas? - Pois é. Eu adoro o planeta com todos os seus acidentes geográficos! Não desgosto da platitude da Terra vista do avião, mas nada se compara à possibilidade de parar em qualquer acostamento e ter ao alcance da mão terra, mato, pedra e, às vezes, até gente do local.
Programando-me para esses dois dias pelo interior do Brasil, parti. A estrada que tomei surpreendeu os outros, mas não a mim. Não amo auto-estradas nem estradas muito boas, em que o relevo fica blindado pela velocidade. Rodando pelas não tão bem conservadas estradas secundárias, o mergulho só não é tão grande quanto seria se fosse a cavalo.
Fui pela BR-116 -a velha estrada por onde passei de jipe há 50 anos. Lá pela altura de Governador Valadares, tomei a estrada do Boi, que me levou até a BR-101 e, de lá, para Santa Cruz de Cabrália -meu destino final. Valeu tanto a pena que devolvi também a passagem de volta para refazer de carro. Surpresas infinitas! Claro que a paisagem não mudou. Quisera que os geólogos me explicassem por que a baía de Guanabara e a estrada do Boi têm tanta semelhança -são inúmeras as rochas no formato do Pão de Açúcar, do Dois Irmãos, do Dedo de Deus.
Muito mais numerosas e mais espalhadas são as torres altíssimas, quase sempre pintadas de vermelho e branco, que nos obrigam a lembrar que vivemos na era da comunicação. Para não nos deixar esquecer de que a rede de informação veio para ficar, as antenas parabólicas estão onde a necessária eletricidade pode estar sendo produzida por geradores familiares, cuja conta não será paga para nenhuma Eletropaulo, e sim para o dono do armazém que vende o querosene. O Brasil que vi está coberto pela rede de informações que realimenta os celulares e traz o mundo para quase toda casa no ermo do sertão.


Programando-me para esses dois dias pelo interior do Brasil, parti; a estrada que tomei surpreendeu os outros, mas não a mim

Na década de 1950, quando rodei pela mesma estrada, não se achava água mineral em garrafa ou copo. Quem não quisesse tomar água gasosa ou refrigerante tinha que chupar laranja. O conceito de água potável não era difundido pelo país. Com variados rótulos e nomes, encontramos em qualquer biboca de beira de estrada, asfaltada ou não, água e suco.
A força de penetração do plástico e da rede de informação pode ter mudado o Brasil. Se mudou ou não, não sei, pois não passo de uma curiosa "automóvelmaníaca" diletante.
A volta pela BR-101 foi uma experiência semelhante. Tanto na estrada do Boi quanto em certos trechos da BR-101 e da BR-116, encontrei, vi e fotografei, por exemplo, uma frase de duas ou três palavras, grafada em papelão, de maneira "inculta" dizendo: "Precisa-se alimento/ Aceita-se alimento/ Precisamos de alimento". Entendi que eles diziam que o Fome Zero não havia chegado lá. Isso foi surpreendente porque, à primeira vista, pode-se imaginar um complô contra o presidente.
Mas complô organizado na BR-116, a 300 km da BR-101, ou na estrada do Boi teria que ser uma organização planejada para fazer inveja. Fiquei com a impressão de que era espontâneo. Claro está que a abertura das estradas mudou exatamente a área a que eu tive acesso. Mas em 1950, 1970 e 1980 eu também só tinha contato com beira-estrada. Há outras novidades, uma mais importante do que a outra: não sei de que jeito difundiu-se o hábito de manter os sanitários cada vez mais limpos em casas, postos de gasolina, restaurantes. Nem ouso descrever o que era sanitário no interior há 50 anos.
Talvez a coisa mais importante que observei tenha sido a difusão das havaianas. Tornamo-nos um povo calçado. Quem inventou as havaianas deveria ser um herói nacional. Elas calçam o Brasil e são provavelmente responsáveis pelo fim do amarelão do jeca-tatu, tão bem descrito por Monteiro Lobato. Comunicando-nos bem, bem calçados, com água para beber e banheiros limpos -encontrei um Brasil novo.
Tenho muito orgulho de ter ido ver de perto esse pedacinho minúsculo de nosso país. Foi o melhor das férias.

ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
@ - amautner@uol.com.br


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