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São Paulo, quinta-feira, 26 de junho de 2003
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outras idéias - maria celia de abreu

Medo, desamparo, solidão, insegurança, incerteza, remorso, arrependimento eram sentimentos que coexistiam com o orgulho, o sentir-se realizado, o idealismo

Geração pioneira

Numa tarde dessas, estando ao telefone com uma jovem vivamente interessada por assuntos da vida em geral, surgiu uma conversa sobre as diferenças entre nossas gerações e, principalmente, sobre as características de pioneirismo da minha geração. Ambas concordamos, a despeito dos 25 ou 30 anos que nos separam, que pioneiro e pioneirismo são termos que vêm carregados de conotações positivas: sentimentos de orgulho, criatividade, ousadia, coragem e outros nessa linha.
Quem tem hoje entre 55, 65 ou 70 anos foi quem, aos 20, conheceu a liberdade inédita que a pílula anticoncepcional passou a permitir às pessoas, acarretando as enormes transformações, que são bem sabidas hoje, no exercício sexual, nos valores vigentes na sociedade e até na estrutura da família. O conflito da jovem mulher -e de seu jovem companheiro de geração- era muito forte: de um lado, continuar seguindo com segurança os mesmos moldes de comportamento que os pais e avós viveram, mas sem exercer a liberdade tão recentemente vislumbrada; de outro lado, usufruir das descobertas da ciência, mas sem ter padrões a imitar e tendo de bater de frente com os ditames morais e religiosos predominantes, o que causava muito medo. A opção era difícil e angustiante. A geração da minha jovem interlocutora já não enfrentou essas dificuldades. Para quem tem hoje seus 30, 35 anos, esses dilemas, se existiram, foram resolvidos em âmbito pessoal -uma questão de foro íntimo.
Na minha geração, foram sobretudo as mulheres que sobressaíram por estarem rompendo padrões. Tornaram-se numerosas nas escolas superiores, incluindo-se em redutos tipicamente masculinos, como a engenharia e a medicina. A mulher dessa geração firmou-se no mercado de trabalho, reivindicando posições e salários até então pertencentes só ao homem. Assumiu cargos até de chefia, familiarizou-se no trato com o dinheiro, abriu conta no banco, tornou-se capaz de se sustentar. Dirigiu seu próprio carro, viajou sozinha, morou sozinha. Desde então até hoje, vem aparecendo num crescendo até em posições políticas, candidatando-se e sendo eleita.
O pioneirismo do homem dessa geração, que compõe hoje a corte dos chamados adultos maduros, pode não ter sobressaído tanto como o da mulher, mas é evidente que ele também arrostou grandes novidades. Adaptou-se a novos costumes e pautou-se por novos valores. Adolescente, trocou as corretas meias brancas por escandalosas meias vermelhas, encontrou outras opções para vestir que não o paletó e a gravata, deixou os cabelos atingirem comprimentos impensáveis para seus pais e avós.
Passou a integrar um mercado de trabalho onde, além de ter de lidar ombro a ombro com mulheres, às vezes até sendo chefiado por uma delas, a tecnologia começou a aperfeiçoar-se a uma velocidade impressionante, e a produção de conhecimentos começou a jorrar aos borbotões, exigindo atualização permanente e flexibilidade, coisas que seus pais e avós não precisavam fazer.
Para propor mudanças e romper padrões, a geração pioneira passou por sofrimentos. Por exemplo, com frequência os pais foram desafiados e enfrentados, e, é claro, as consequências (positivas e negativas) foram sofridas. Medo, desamparo, solidão, insegurança, incerteza, remorso, arrependimento eram sentimentos que coexistiam com o orgulho, o sentir-se realizado, o idealismo.
Hoje, continuamos sendo pioneiros em compor uma geração que vai indo para a terceira idade novamente rompendo os modos de viver dos nossos antecessores. Cá entre nós, ser pioneiro é cansativo e desgastante e parece injusto que continue para sempre. Quando penso nos pioneiros do Velho Oeste, parece-me que eles conquistavam os territórios (a duras penas), assentavam-se e podiam usufruir então de alguma rotina. Isso era mais do que justo. Podiam parar de batalhar e apenas colher o que haviam plantado. Para a minha geração, não houve a oportunidade de uma rotina; maduros, continuamos descobrindo vias inovadoras para nossas vidas.
Depois de toda essa conversa ao telefone com minha jovem e estimulante interlocutora, comecei a pôr em dúvida se pertencer a uma geração pioneira foi tão vantajoso, tão motivo de orgulho assim. Estar sempre desbravando e, portanto, sempre em conflito e em dúvida. Pergunto-me, com sinceridade, se não foram mais felizes os que vieram antes de nós, com suas certezas, ou os que vieram depois, com respostas já testadas. Porém, do fundo do coração, com toda a sinceridade, embora um pouco fatigada, eu não queria ter nascido em nenhuma outra época, pois não vejo como poderia ter sido mais vibrante!


MARIA CELIA DE ABREU é doutora em psicologia da educação e psicoterapeuta dedicada à meia-idade, autora de "Para ser Estudante da Meia-Idade em Diante" (ed. Gente)


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