São Paulo, quinta-feira, 26 de setembro de 2002
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Na boca de todo mundo, ética perde significado

Em época de eleição, conceito valioso na escolha do voto é exaltado e manipulado; para avaliar a ética, o que vale é a ação

ANTONIO ARRUDA
DA REPORTAGEM LOCAL

Quanto mais se aproxima o 6 de outubro, mais a ética brilha como palavra de ordem nos palanques, na mídia e nas conversas inflamadas do brasileiro às vésperas das eleições. O conceito de ética, indispensável e eficiente na escolha do melhor candidato, é exaltado, paparicado, mas também manipulado, usurpado e maquiado. Banalizada, a ética virou pau para toda obra. "Há duas palavras que entraram na moda e que temos de especificar muito bem: ética e cidadania. A ética como está sendo debatida pode facilmente ocultar o seu verdadeiro sentido, pode mascarar candidatos", diz Maria Victoria Benevides, cientista política da Universidade de São Paulo. E, para tanto, o discurso é uma das estratégias mais eficazes e utilizadas. "No momento de falar sobre suas propostas e sobre sua conduta, é fácil o candidato criar um discurso coerente", diz Mario Sergio Cortella, filósofo da PUC-SP e colunista da Folha. Além disso, os discursos são todos prontos, moldados pelo marketing político; a propaganda da TV é sedutora demais, diz Renato Janine Ribeiro, professor de ética e filosofia política da USP. Acontece que, quando a ética está sob análise, sob avaliação, o que importa é a ação, e não a palavra, o discurso. "A ética é a filosofia da ação; só posso falar se uma pessoa é ética a partir da conduta que ela demonstra no dia-a-dia. Estarei sendo tão ético quanto o outro puder me reconhecer ético", diz Carlos Eduardo Meirelles Matheus, professor de filosofia da PUC-SP. Dessa forma, a ética de uma pessoa pode sempre ser comprovada. Basta ter "um olhar sobre a prática", diz Cortella. E vários aspectos podem ser analisados. "Um deles, se não o principal, é o histórico do candidato; o que de fato ele fez pela população", diz Roberto Romano, professor de filosofia da Unicamp. Afinal, num país com tamanha miséria e desigualdade social, não basta dizer ou ainda provar que não se é corrupto, "é preciso ir além e provar que se fez algo que realmente diminuiu, por exemplo, a corrupção", diz Romano. Alguns sinais que ajudam a aferir a ética do político). Ter dúvida na escolha do candidato é uma reação que faz parte do próprio conceito geral de ética, "já que não existe ética sem escolha, e não há escolha sem dúvida", diz Janine Ribeiro.

Ética pessoal
O eleitor que não lança mão da análise das ações políticas dos candidatos no passado, tenha ele exercido um cargo no governo ou não, corre o risco de se valer apenas da ética pessoal para identificar o político idôneo. Estudo deste ano realizado pelo Ibope mostra que 63% dos eleitores preferem um governante honesto, ainda que ele não seja conhecido como bom administrador. Essa mentalidade prioriza a chamada "ética de convicção" (ou ética de princípios, pautada por valores da pessoa) em detrimento da "ética da responsabilidade" (ou ética de resultados, centrada nos fins e objetivos). Sobre isso, Janine Ribeiro escreveu no recém-lançado "Comunicação na Polis" (editora Vozes): "Se ele for impecável do ponto de vista dos princípios, porém um desastre como governante, a ética pessoal o absolverá (não roubou), mas não a ética política".

Não faço para o outro...
Um princípio elementar, primário mesmo, mas comumente desprezado, guia as ações que determinam os comportamentos éticos ou não. Trata-se do "Não faças a outrem o que não queres que te façam". É como está na Bíblia, mas, quando foi reformulado pelo filósofo alemão Immanuel Kant, esse princípio adquiriu um tom mais prático. Janine Ribeiro exemplifica isso: "Se eu furto o bem de outra pessoa, estou legislando que toda pessoa pode furtar os bens alheios -o que não hei de querer, porque autorizará os outros a tirarem o que é meu".
Esse princípio coloca políticos e cidadãos no mesmo balaio: voltar-se para a ética do político prevê também uma reflexão sobre os próprios valores.
"Reconhecer-se responsável pelo desenvolvimento e pela manutenção da ética é o primeiro passo para uma boa escolha política", diz Maria Clara Dias, filósofa da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A ética do cidadão não está desvinculada da política. "Uma grande parte dos defeitos dos nossos governantes são nossos defeitos", diz o filósofo José de Ávila Aguiar Coimbra.


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