São Paulo, quinta-feira, 26 de outubro de 2006
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Outras idéias - Michael Kepp

Eu, homossexual?

Ninguém considera você um craque na cozinha se sabe fazer um suflê soberbo nem um ás dos esportes radicais se, uma vez, foi voar de asa-delta com um instrutor. Mas faça outro mergulho experimental: passe uma noite de intimidade, ou mesmo cinco minutos eróticos, com alguém do mesmo sexo e, "voilà", você é homossexual de carteirinha. Eu nem precisei ousar tanto para ouvir meu nome e a palavra "veado" na mesma sentença.
Só precisei dividir meu apartamento com um gay. Ele era o amigo brasileiro de uma amiga minha, e eu era o americano não homofóbico que acabara de mudar para o Rio sem fiador para alugar apartamento. Mas, depois que meus colegas, um grupo de correspondentes estrangeiros, descobriram quem morava comigo, o boato se espalhou: "É coisa de boiola".
Nem ter uma namorada carioca abafou a fofoca. Por fim, um colega do "New York Times" veio me falar das suspeitas do grupo. "Mike, todo mundo quer saber se você é gay ou não", ele disse. "Bem", respondi, "venho pagando uma carioca para fazer papel de namorada para que esses boatos não se espalhassem. Acho que estou jogando dinheiro fora".
O homofóbico não entendeu meu senso de humor e repetiu minha confissão, sem o tom irônico, para os outros colegas. Foi quando alguns começaram a me evitar em eventos sociais, algo que ficou mais evidente depois do fim do meu namoro.
Durante esse período, o diretor de elenco de um filme, um longo clipe musical que Mick Jagger estava fazendo no Rio, perguntou se eu queria fazer teste para ser o cabeleireiro gay de Mick. Eu havia passado alguma vibração gay? Não, eu fazia o Charlie Brown no musical montado pela comunidade americana no Rio, baseado nos personagens do Snoopy. E o diretor achou que a voz em falsete que eu usava para interpretar o menino de cinco anos me tornava perfeito para o papel.
Antes do teste, ele perguntou: "Você é gay?". "Não", eu disse, "por quê?". "Se fosse, ficaria mais convincente no papel", ele respondeu. Por quê? Ser o cabeleireiro de Mick exigia falar com voz levemente histérica e abanar os braços.
Basta imaginar Tom Cavalcante imitando Clodovil em um ataque de ansiedade. Durante meu teste, virei essa caricatura.
Mas o painel que me julgava disse que eu não era bicha-louca o bastante. Alguém que o era, o superafetado cabeleireiro de Mick, ficou com o papel.
Se eu tivesse dito que era gay, talvez ficasse com o papel. Como os colegas me ensinaram: diga às pessoas aquilo em que querem acreditar, e elas acreditarão. É como o preconceito ganha seu palco e sua platéia fácil de agradar. Por isso se perpetuam mitos, como a crença de que a homossexualidade não é natural. Ser gay não é anomalia.
Nem mesmo é preferência. É uma inclinação irresistível. Porque, se pudesse escolher sua sexualidade, por que alguém optaria por uma que ofende e intimida tanta gente?


MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 24 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record) www.michaelkepp.com.br


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