São Paulo, quinta-feira, 29 de abril de 2004
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outras idéias

dulce critelli

Fama sem glória

No "BBB", o que se tinha para mostrar era a ociosidade, o puro instinto sexual, a disposição para a humilhação. Ninguém fez nada que merecesse memória

O que você pensa dos "reality shows" que a TV exibe, como o "Big Brother Brasil"? Os altos índices de audiência registrados indicam, de fato, que o telespectador se identifica com o que é apresentado ou pára um pouquinho só para conferir o que os seus olhos estão vendo?
Será que realidade é isso mesmo? Casa confortável, piscina, nada para fazer ou para ler, nenhuma preocupação com o país, com o mundo? Realidade é apenas a ambição do prêmio final? Do dinheiro? É fazer fofocas? Esperar pela opinião do telespectador sobre ficar ou sair da casa? Tentar seduzi-lo? Pagar a humilhação de passar a noite numa gaiola?
E o apresentador ainda os chama de heróis, eles que só lagarteavam ao sol na expectativa da fama e do enriquecimento rápido e sem empenho!
Sinceramente, esses programas me ofendem, agridem minha humanidade. Cresci aprendendo -e não fui ingênua- que a dignidade de um homem está naquilo que ele pode oferecer ao mundo: um objeto útil ou a sua própria utilidade, um objeto belo, um gesto em favor do aprimoramento do ser humano, um ato que encaminhasse uma solução aos milhares de problemas da vida.
As inúmeras biografias publicadas de homens e mulheres cuja fama veio da interferência que tiveram na história nos fazem lembrar que nossos gestos e palavras não devem ser fúteis nem provocar a vergonha ou a desonra própria ou alheia. Era esse o critério usado já na Grécia antiga para decidir o direito de alguém de aparecer à luz na vida pública ou de um assunto ser tratado publicamente. Para eles, nem mesmo as questões econômicas tinham lugar no espaço público, pois, ligadas à sobrevivência, aproximavam-nos dos animais e afastavam-nos do que era mais digno de um homem: seus atos e seus discursos.
Aparecer publicamente era, para os gregos, buscar testemunho para suas excelências, para seus virtuosismos. E é também para a maioria de nós, que quer ser reconhecida pelo que fez ou disse de melhor.
No entanto, no "BBB", já que a TV tomou o lugar da praça pública, o que se tinha para mostrar era a ociosidade, a intriga barata, o corpo malhado ou desfigurado pelas tatuagens, o puro instinto sexual, a disposição para a humilhação. Ninguém fez nada que merecesse memória. Ser simpático, bonito, pobre ou grosseiro são adereços ocasionais e de nada valem para a história. Exposição sem registro e sem virtudes.
Encerrado o longo período de exibição, ainda um bônus, num domingo à noite, que o apresentador chamou -espantoso!- de "lavanderia". Uma oportunidade para que todos os participantes tirassem a limpo coisas que ficaram engasgadas: uma farpa, um olhar, um disse-que-disse. Fama sem glória. Desde que se alcance a mera visibilidade, não importa se o que se expõe em público sejam nossas ignorâncias, nossas maldades, nossos horrores. Sem a lembrança do princípio de dignidade, também não sobrou espaço para qualquer elegância ou bom senso. Então roupa suja não se lava em casa?
Sinal dos tempos? Expressão daquilo que faz sentido para nós? Ou da falta de sentido dos tempos modernos?
Não podemos nos esquecer de que é vendo e ouvindo como os outros vivem, como eles dão conta da vida e quais as recompensas e punições que recebem por isso, que vamos definindo nossos valores e escolhendo nosso destino. A exemplaridade, esse é o motor do "viver em conjunto".
Nossos exemplos estão em casa, na escola, nas ruas, mas, principalmente, aparecem na TV. Ela é a maior responsável pela formação de nossos valores, sonhos e objetivos. Já não está mais do que na hora de a TV assumir a responsabilidade existencial que, por natureza, lhe pertence inexoravelmente?


DULCE CRITELLI, professora de filosofia da PUC-SP, é autora dos livros "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana; e-mail dulcecritelli@existentia-br.com


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