São Paulo, quinta-feira, 31 de março de 2005
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s.o.s. família

rosely sayão

Crianças não são pequenos adultos

As crianças pequenas estão totalmente submetidas ao mundo adulto. Diariamente, elas estão expostas a todo tipo de estímulo, desde os mais simples, que fazem parte do cotidiano, até os mais complexos. Televisão, internet, jornais, revistas, painéis, filmes publicitários entre seus programas preferidos, o estilo escolar e de vida do mundo contemporâneo: tudo isso colabora para que a criança vá sendo metralhada por questões que não fazem parte do universo infantil.
Há várias conseqüências de tantos estímulos que levam à perda precoce da infância. Depressão, medo da violência e conseqüente dificuldade para conseguir autonomia compatível com a idade, dificuldade de aprender, acúmulo de informações que não se transformam em conhecimento e, claro, a erotização precoce que provoca hiperexcitação à beira do incontrolável. Os pais e as escolas nem sempre conseguem poupar seus filhos e alunos de tantas influências. Eles costumam argumentar _muitas vezes com razão_ que é impossível evitar a relação da criança com esse mundo. Muitos pais até tentam, mas acabam metendo os pés pelas mãos. Na tentativa de proteger os filhos, exageram na dose e impedem que cheguem até eles temas que fazem parte da vida. A morte é um bom exemplo: muitos pais não levam os filhos a velórios de parentes e alguns chegam a inventar mentiras para ocultar o ocorrido.


Televisão, internet, jornais, revistas, painéis: tudo colabora para que a criança seja metralhada por questões que não fazem parte do universo infantil


Hoje quero refletir sobre como os pais colaboram, sem perceber, com essa gradual destruição da infância. Vamos pensar no hábito, cada vez mais freqüente, que os pais têm de falar com os filhos a respeito de todo e qualquer assunto e responder às suas perguntas sem hesitar e, muitas vezes, com uma riqueza impressionante de detalhes.
Alguns pais até acham graça em certas questões feitas pelos filhos e outros se orgulham da curiosidade deles. Aliás, os filhos da classe média são, em um momento ou em outro, considerados "precoces" pelos pais. Com o maior prazer, é claro.
Por trás do hábito dos pais _vale lembrar que professores agem da mesma forma_ de conversar com crianças como se elas fossem pequenos adultos, há justificativas das mais nobres: a busca de uma relação mais democrática com os filhos, a transmissão de conhecimentos, o tratamento natural de assuntos antes ocultados e o anseio de dar mais liberdade e de não reprimir. A criança, entretanto, não dispõe ainda de mecanismos que lhe permitam escolher, decidir, conter-se, adiar vontades, proteger-se e tantas outras questões que resultam de tamanha exposição.
Como exemplo há um fato cada vez mais presente na vida das crianças: a separação dos pais. Sem saber ao certo como conduzir a questão com os filhos, os pais caem em dois equívocos. O primeiro é o de dar explicações demais. Depois de informar ao filho que o pai _geralmente é isso o que ocorre_ vai se mudar, frente à inevitável pergunta da criança ("Por quê?"), eles acabam explicando coisas que ela ainda não tem condições de entender.
Dá para reagir de modo diferente? Sim, há muitas outras maneiras de responder de modo a poupar os menores das complexas questões que envolvem uma separação. Não há, inclusive, problema nenhum em dizer ao filho que ele ainda não tem condições de entender o assunto.
O segundo equívoco é o da dissimulação. Os pais dizem que um deles vai viajar e esperam que o filho acredite. Mas a criança não pode ser subestimada a esse ponto. O mais importante, num momento desses é a criança ouvir dos pais que eles continuarão a ser pais e a cuidar do filho, em todos os sentidos.
E é agindo assim, desde os fatos mais difíceis da vida até os mais simples, que os pais colaboram para o final precoce da infância. Já que não podemos mudar o contexto geral da vida dos mais novos, bem que poderíamos tentar não fazer parte dessa trama que onera tanto as crianças.

ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (ed. Publifolha)
roselysayao@folhasp.com.br



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