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São Paulo, quinta-feira, 31 de julho de 2003
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Consultas rápidas geram insegurança no paciente e fazem com que profissionais de saúde dependam dos serviços de laboratório

Exames demais afetam relação médico-paciente

IVANY TURÍBIO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Exames são ferramentas de apoio ao diagnóstico médico desde a Grécia Antiga. Segundo Paulo Andrade Lotufo, diretor científico da Associação Paulista de Medicina e superintendente do Hospital Universitário da USP, os gregos diagnosticavam o diabetes bebendo a própria urina -o gosto doce indicava resultado positivo. De lá para cá, muita coisa mudou no mundo, na medicina e nos pacientes. Hoje, é frequente o paciente sair do consultório soterrado por pedidos de exames após uma consulta que acontece de forma cada vez mais rápida, superficial e insatisfatória. Uma pesquisa realizada na PUC de Campinas (SP) constatou a frustração com esse tipo de atendimento. A cada 100 consultas realizadas por convênios médicos que possuem clínicas e hospitais próprios, cerca de 90 registram a solicitação de exames, segundo a Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge). O número sobe quando o atendimento é feito pela rede credenciada: a proporção é de 1,5 exame para cada consulta. De todos esses exames, 70% apresentam resultados normais, afirma Antonio Carlos Lopes, professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica. "Há um certo exagero na realização de exames, especialmente dos complementares, como radiografia, ultra-sonografia, eletrocardiograma, eletroencefalograma, ressonância magnética e tomografia computadorizada", afirma Wagner Barbosa de Castro, coordenador da comissão econômica da Abramge.

Tecnologia
Graças ao avanço tecnológico, os exames laboratoriais e de imagem estão cada vez mais precisos e detalhados, o que traz benefícios principalmente nos casos mais graves ou naqueles em que o diagnóstico é mais difícil. Tantos detalhes, porém, podem causar angústia desnecessária nos pacientes.
Em alguns casos, os exames apontam pequenas alterações que não têm nenhuma consequência para a saúde daquele paciente, explica o endocrinologista Marcelo Bronstein, professor da USP. Mas a constatação dessas alterações pode ser suficiente para que o paciente fique preocupado, mesmo que o médico diga que não há motivo para isso.
Um bom acompanhamento do paciente requer alguns exames anuais. Mas os próprios médicos admitem que muitos diagnósticos podem ser feitos sem os resultados dos laboratórios. O problema, em alguns casos, é que isso é mais trabalhoso.
"Para o médico, numa rotina de atendimento estafante, é mais fácil pedir os exames do que ouvir o paciente atentamente", afirma Jorge Mattar, coordenador do pronto-atendimento do hospital Sírio Libanês e médico do Hospital das Clínicas (HC), ambos em São Paulo. "Mas nós sabemos que ouvir atentamente pouparia exames e teria mais eficácia."
"O excesso de pedidos de exames contraria os princípios da ética médica", afirma Lopes. "A relação entre médico e paciente é de caráter humanístico: o médico tem o dever de resolver o problema de seu paciente, não importando se ele paga ou não pela consulta ou quanto paga", diz o presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, referindo-se aos médicos que se dizem pressionados pelo sistema de saúde para fazer consultas cada vez mais rápidas.

Conduta adequada
Uma consulta normal prevê que o médico faça a anamnese (levantamento dos dados do paciente, incluindo queixas, histórico pessoal e familiar) e o exame clínico. São essas informações que levam o médico a elaborar o diagnóstico que, se necessário, será confirmado por exames laboratoriais. Por isso esses exames são chamados de complementares. "O exame complementar não pode tomar o lugar da relação entre médico e paciente nem do diagnóstico", afirma Moacyr Esteves Perche, diretor-corregedor-adjunto do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp). Alguns médicos, porém, não querem ou não podem perder tempo para examinar o paciente convenientemente e optam por pedir uma série de exames, diz Marcos de Almeida, professor de bioética da Unifesp. Luís Roberto Londres, diretor da clínica São Vicente (RJ), compara o bom médico ao lendário detetive Sherlock Holmes (personagem criado por Arthur Conan Doyle, em 1887). Para ele, é possível "desvendar" boa parte dos casos no consultório. "A doença tem cara. É a chamada história natural da doença. Com uma anamnese bem-feita, seguida de exame físico, chega-se ao diagnóstico correto em 90% dos casos." Para tentar inibir os excessos, a Associação Médica Brasileira (AMB) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) elaboraram, em 2002, as diretrizes clínicas para cem diferentes problemas de saúde. Esse documento define os chamados protocolos de investigação e terapêutica, que nada mais são que o passo-a-passo do atendimento médico: o profissional deve fazer a anamnese e avaliar pessoalmente o paciente e só então solicitar exames, sempre começando pelos mais simples. Nenhum médico, porém, é obrigado a adotar esses protocolos. "São apenas diretrizes, não têm caráter de uma camisa-de-força", diz Perche.

Exigência dos pacientes
Os médicos, porém, não são os únicos responsáveis pelos pedidos excessivos de exames. Alguns pacientes não concordam com o diagnóstico e, mesmo depois de uma consulta longa e cuidadosa, exigem a realização de exames. "Existem pacientes que padecem de um transtorno, apresentam sua queixa e o médico não encontra nada. Nesses casos, o paciente sai da consulta furioso", diz Almeida.
A divulgação das novidades médicas pode gerar uma ansiedade que também leva o paciente a sugerir exames complementares. Para o psicanalista Armando Colognesi Jr., professor do Instituto Sedes Sapientae, essa ansiedade está relacionada à ausência de contato com o médico: "O exame substitui o contato, e o médico vai perdendo a escuta, o escrutínio, a investigação". Segundo ele, a curiosidade pelos exames diminui quando o médico cuida do doente, não da doença. Sem uma relação de confiança com o médico, porém, o paciente sente-se fragilizado e tende a fantasiar. "Ele acredita que o exame vai descobrir tudo o que o médico não descobre", explica Colognesi.
O presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, Antonio Carlos Lopes, acredita que essa atitude decorra também da perda de carisma do médico. "O paciente inseguro solicita vários exames porque não confia no médico. O médico inseguro faz o pedido porque não realiza um bom exame clínico." Para avaliar o profissional, ele sugere que o paciente observe: "quanto mais exames o médico pede, menos sabe do doente; quanto mais remédios ele prescreve, menos sabe da doença".
Outro ponto que o paciente deve ter em mente é que nem sempre o exame mais caro e de última geração é o mais eficaz. Durante muito tempo, por exemplo, acreditou-se que a tomografia computadorizada era a melhor opção para constatar e investigar traumas cranianos, explica Perche. "Mas os últimos estudos mostram que a radiografia é mais eficaz, mais rápida e mais barata."


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