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São Paulo, quinta-feira, 31 de julho de 2003
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outras idéias - gustavo ioschpe

No universo tradicional, onde o bem maior que pode haver na vida é o convívio afetivo com o próximo, o trabalho é apenas um aborrecimento

O importante é o espetáculo

Já diz o economês que "não existe almoço de graça". Graças à incontinência verbal de alguns de nossos governantes e pseudo-sábios, há, porém, uma idéia de que o crescimento econômico virá por decreto, que a chave para o Éden é a vontade política. Não é. Há um preço a pagar pelo crescimento econômico sustentado: chama-se aumento de produtividade. Ou seja, fazer mais com o mesmo tempo ou quantidade de capital disponível -que também não cai do céu, é antes o resultado de uma busca incessante, fruto da competitividade e do desejo de lucro.
O Brasil não é um país pobre e atrasado apenas por causa da corrupção de alguns líderes, da maldade das elites ou da exploração dos países ricos. Faz parte do "ethos" de todo o povo -com as honrosas e crescentes exceções- algo que Weber chamava de mentalidade tradicional. Enquanto a mentalidade moderna visa ao lucro, a tradicional busca apenas o suficiente para a subsistência; enquanto a moderna preza o profissionalismo e a eficiência, a tradicional preza os laços pessoais; enquanto uma quer defender seus interesses, a outra quer saber de amizade. Não é por acaso que, quando um brasileiro se depara com membros das três maiores economias do globo -EUA, Alemanha e Japão-, há um certo desprezo: eles são frios, chatos, cegos cumpridores de ordens, incapazes de criatividade, infelizes.
O "insight" me veio à mente porque estou voltando ao Brasil depois de uma temporada de oito anos no chamado Primeiro Mundo. Volto com a tarefa ingrata de montar um apartamento. E, depois de um mês, permaneço acampado: os eletrodomésticos, que deveriam ter chegado duas semanas antes de mim, levaram mais três e ainda não estão instalados; a mudança está retida no porto de Santos por causa da paralisação da Receita e, até há pouco, eu dormia sem cortinas, em cama emprestada.
A confusão da chegada é normal; não é a primeira vez que me mudo e fico alguns dias no limbo. A diferença é que, no Brasil, os prestadores de serviço mentem deslavada e desabridamente. E mentem porque há uma cultura na qual o personalismo suplanta a eficiência. Profissionalismo é raro. O discurso de defesa dos direitos do consumidor não comove nem assusta; só o sentimentalismo, a idéia da formação de um certo laço afetivo entre pedinte e prestador, é que impele à ação.
Conta bancária, por exemplo. Só consegui abrir a dita cuja quando cheguei ao terceiro banco, depois de passar quase uma semana regularizando o CPF. No primeiro, "deu pau" no sistema, que não encontrou meu CPF. No segundo, o gerente demorou uns dez minutos para interromper sua animada conversa até me atender e me pediu que desse um pulinho na esquina para fazer as cópias dos documentos para ele porque sua máquina estava quebrada. No terceiro, pediam comprovante de renda, algo implausível para quem está vindo de um mestrado no exterior. Após algum choramingo, saiu a conta. Prometeram-me talão de cheques num prazo de cinco dias. Até agora, neca.
Com o telefone celular, foi a mesma coisa. Escolhi uma operadora por ser a mais barata e funcionar em quase todo o mundo. Não vou entrar nos detalhes, mas, em duas semanas, já estou na segunda linha de tanta informação errada que me passaram. E o telefone não pega bem nem em Porto Alegre.
Mas o melhor ainda estava -aliás, está- por vir: eletrodomésticos. Foram comprados há semanas de uma companhia chegada à ironia e com um gosto pelo realismo mágico. Ironia porque se chama "Ready" alguma coisa. "Ready", em inglês, significa "pronto", e eles nunca estão prontos. Os telefones constantes na nota fiscal não existem e, depois de conseguir encontrar as pessoas (ir)responsáveis, começamos um jogo, que durou semanas, no qual eles me informam que todo o pedido já está no caminhão, chega amanhã, já vem vindo, na parte da tarde, no final da tarde, às 18h, depois das 18h, entre as 18h e as 20h, entre as 20h e as 21h e, ops, deu "pobrema" com o fornecedor, com o sistema, com o caminhão, com a fábrica.
No universo tradicional, onde o bem maior que pode haver na vida é o convívio afetivo com o próximo, o trabalho é apenas um aborrecimento que garante o financiamento dos momentos de folga. Clientes e prazos são um estorvo. Como os próprios clientes estão na mesma sintonia, a defesa estridente de seus direitos -ou do mero respeito e da vontade de não ser feito de palhaço- dá lugar à tentativa de apelo para a compaixão ou da busca de algum pistolão que resolva no personalismo aquilo que a ineficiência deixou para lá.
Não é por acaso que o prometido espetáculo do crescimento já está com a entrega atrasada, os consumidores continuam felizes com seus prestadores, e o impávido colosso segue sendo o país de um futuro sempre prorrogável.


GUSTAVO IOSCHPE, 26, é mestre em desenvolvimento econômico pela Universidade Yale (EUA); e-mail: desembucha@uol.com.br


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