São Paulo, sábado, 01 de junho de 2002

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FOLHA INÉDITOS

A guerra que não acabou


Chega ao Brasil "Guerra dos Bálcãs", relato do conflito da década de 1910 que resultou no primeiro livro de John Reed


O coração de Istambul
Nosso barco se deparou com um denso emaranhado de caiks estrepitosos, com barqueiros gritando e discutindo. Abdul se levantou e gritou:
- Vardah! Saiam da frente, filhos de bestas! Abram caminho para os passageiros! Vocês estão sem passageiros, por que bloqueiam o local de desembarque?
Colocamos nossa piastra e meia sobre o banco e saltamos para terra firme em Istambul. Pela rua estreita e sinuosa com melões, legumes e barris amontoados, coberta por toldos surrados sustentados por pedaços de pua, nós nos deparamos com uma multidão de carregadores, mullahs (teólogos muçulmanos), mercadores, peregrinos e mascates. Ao modo oriental, ninguém saía do nosso caminho -nós prosseguíamos aos solavancos.
Numa rua transversal, uma fila de meninos e rapazes (cada um carregando um pão) passou marchando entre linhas de soldados.
- Recrutas -disse Daoud Bei.
Com frequência encontrávamos um oficial subalterno e dois homens armados rondando no meio da multidão, olhando atentamente os rostos dos jovens. Eles procuravam possíveis soldados que ainda não tivessem sido convocados. Gritos e batidas de pés, berros nervosos e gemidos de dor chamaram nossa atenção para uma passagem lateral, onde cerca de cem homens e mulheres de todas as raças se empurravam diante de uma loja. Bordas de fez dançavam no ar, mãos tentando pegar algo subiam e desciam, vozes engasgadas berravam e nas proximidades dois policiais batiam nas costas de quem estivesse por perto -bum! bum!
- Esperam para comprar pão -explicou Daoud. - Centenas de lugares como esse em toda a Constantinopla. Há cereal mais do que suficiente em Anatólia, mas o Exército precisa dos trens de carga. - Pelo menos é o que dizem.
Eu disse que devia haver uma maneira fácil de alimentar a cidade.
- Provavelmente -respondeu ele com um tom irônico. - Já ouviu dizer que os administradores da cidade estão retendo o suprimento para conseguir preços mais altos? Uma mentira desprezível, é claro. No entanto, tais coisas já aconteceram antes. Nossos irmãos alemães são mais ou menos responsáveis. Eles convenceram nosso governo a fazer um recenseamento da cidade, algo que nunca foi possível desde o século 15. Mas os alemães sempre acham um jeito. O governo assumiu o controle das padarias e as fechou por três dias. Depois anunciou que todos deviam requisitar um tíquete para poder comprar pão. Pouco a pouco, eles estão conseguindo registrar todos nós, pois é necessário comer. Ontem à noite, nas ruelas de Pera, passei por uma padaria onde o último pão tinha acabado de ser distribuído, com uma multidão aos gritos do lado de fora, porque tinha ficado sem pão. Primeiro eles quebraram as janelas, apesar dos porretes da polícia, e depois começaram a destruir as bandeiras turcas hasteadas em todas as casas para celebrar a queda de Novo-Georgievsk, gritando: "Não nos importamos com vitórias! Queremos pão!".
Sentamos de pernas cruzadas na tenda de Youssof Efêndi, o Hoja, no Misr Tcharshee, ou Bazar do Egito, onde se vendiam drogas. Uma luz tênue era filtrada pelas janelas cobertas de teias de aranha, no alto do teto em arco que cobria o bazar -formando uma sombra fresca enriquecida pelos perfumes, drogas, ervas e estranhos remédios orientais, pelo café de Aden, pelo chá do sul da Pérsia. Acima das cabeças o arco caiado estava rabiscado com imensas marcas pretas, preces a Alá e as cobras de esculápio retorcidas, em formas de versos do Alcorão. Acima da tenda, na parede, havia uma moldura intrincada de madeira esculpida, coberta de teias de aranha, e sob aquela luz crepuscular expunha-se todo tipo de objeto estranho -conchas de mendigar de dervixes, feitas com a pele frágil de animais marinhos, ovos de avestruz, cascos de tartaruga, dois crânios humanos e algo que era evidentemente o maxilar inferior de um cavalo. No balcão e nas prateleiras de trás havia garrafas de vidro amontoadas e potes de barro cheios de âmbar cru, pedaços de cânfora, haxixe em pó e em pedaços, ópio indiano e chinês, o ópio fraco da Anatólia, montes de ervas secas para curar a peste, pó negro para poções mágicas de amor, cristais de óleo para afrodisíacos, encantos para tirar mau-olhado e para confundir o inimigo, essência de rosas, pedaços e óleo de sândalo. No pequeno recinto escuro no fundo da loja havia pacotes e jarras amontoados, de modo que quando Youssof Efêndi acendeu seu lampião o lugar lembrava, inclusive no cheiro, a caverna dos 40 Ladrões.
Ele nos parou, curvando-se, com a mão direita deslizando para baixo e ondulando até os lábios e a testa repetidas vezes. Uma figura alta e majestosa com um longo caftá de seda cinza, e fez enrolado com o turbante branco de mestre religioso -imaculado. Uma barba preta e brilhante cobria sua boca vigorosa e os dentes deslumbrantes. Seus olhos eram escuros, vivos e dóceis.
- Salaam aleyboum, Doud Bei -disse ele suavemente. - Que a paz esteja convosco.
- Aleykoum salaam, Youssof Efêndi -respondeu Daoud, fazendo rapidamente a reverência e tocando os lábios e a testa. - Este é meu amigo dos Estados Unidos.
- Hosh geldin. Seja bem-vindo -disse-me o Hoja, cortês, com o movimento constante das mãos aos lábios e à testa. Ele não disse "salaam", que só é usado entre muçulmanos. O Hoja falava apenas turco.
- Bedri! -gritou ele, batendo palmas, e um menino saiu correndo de algum lugar no interior da loja. - Café, haíde!
Sentamos bebericando o líquido denso e doce, fumando os longos cigarros chibouks de madeira, que enrolamos com tabaco selecionado de Samsoun, na obscuridade fresca e perfumada.
- O effendim está bem? -murmurou o Hoja gentilmente, no ritual de boas maneiras oriental. A cada gole que tornava, a cada trago em nosso cigarro, ele tocava os lábios e a testa, e nós fazíamos o mesmo para ele. - Que Deus o faça agradável a seu estômago.
O Hoja era um homem poderoso em Istambul. Vinte anos antes ele era muezim na mesquita de Zeirick Kilissi, que um dia foi a igreja de São Salvador Pantocrator, em cujas sombras ainda se encontra o sarcófago de mármore verde da imperatriz Irene. Depois, dirigia as orações de sexta-feira nas grandes mesquitas. Foi um professor popular e um conselheiro encantador e finalmente foi enviado a Abdul Hamid para conduzir preces particulares no pavilhão Yildiz, durante os longos anos em que o sultão se encerrou ali temendo ser assassinado.
- Conheço muitas fábulas sobre as maravilhas dos Estados Unidos -disse Youssof Efêndi, graciosamente. - Parece que há lugares maiores do que aqueles erigidos pelos djinni nos tempos antigos, e ouvi dizer que há um demônio chamado Labuta -ao dizer isso seus olhos brilharam- que anda sorrateiro pelas ruas e devora pessoas e não é conhecido em nenhum outro país. Um dia irei para lá, fiquei sabendo que ali o ópio vale seu peso em ouro.
Ele olhou para Daoud e depois para mim.
- Vocês são diferentes de nós, vocês das raças do Ocidente -ele comentou. Daoud Bei é bonito, mas refinado demais e pensa demais. Terá um esgotamento nervoso algum dia. Ele não devia fumar tabaco, e sim comer muitos ovos e beber muito leite. Diga ao efêndi norte-americano que eu acho que ele não pensa muito e é muito feliz. É assim que eu sou.
Eu queria que Daoud perguntasse quantas esposas ele tinha. O Hoja compreendeu minha curiosidade mal-educada e sorriu.
- Pekki! Quantas esposas tem o efêndi? -ele disse. Pensa que é mais fácil para um maometano sustentar duas esposas do que para um cristão? Alá nos protege! As mulheres são caras. Tenho apenas seis amigos que têm mais de uma esposa. Quando os vendedores de escravos armênios vêm à noite de Scutari ao meu harém com uma bela odalisca para me vender, eu respondo com um provérbio: "Quantos corpos podem viver da carne de um homem?".
- O que Youssof Efêndi pensa sobre a guerra?
- A guerra? -disse, e o olhar evasivo em seu rosto mostrou que eu tinha tocado num assunto no qual ele estava profundamente envolvido. - Meu filho está nas trincheiras em Gallipoli. Seja feita a vontade de Alá! Não se pensa se a guerra é boa ou ruim. Somos uma raça lutadora, nós, osmanlis.
- Os turcos... -comecei.
O Hoja me interrompeu com uma torrente explosiva e confusa de palavras.
- Você não deve nos chamar de "turcos" -disse Daoud. - "Turco" significa pessoa rústica, tosca, ou "caipira", como vocês dizem. Não somos turcomanos, bárbaros, selvagens sanguinários da Ásia Central. Somos osmanlis, uma raça antiga e civilizada.
O Hoja falou com fraqueza sobre os alemães.
- Não gosto deles - disse. - Eles não são educados. Quando um inglês ou um norte-americano está há um mês na Turquia e vem à minha tenda, ele toca os lábios e a testa com as mãos e me saúda: "Sabah sherifiniz hair ola". Antes de comprar algo, ele aceita meu café e meus cigarros, e conversamos sobre assuntos indiferentes, como é apropriado. Mas quando os alemães vêm eles cumprimentam como fazem em seu Exército e recusam meu café. Querem comprar e ir embora, sem fazer amizade. Eu não vendo mais para alemães.
Mais tarde observei muitos alemães pela cidade. Havia centenas deles -oficiais em licença. Turistas e funcionários públicos. Com frequência eles violavam a delicada etiqueta que rege a vida muçulmana. Falavam com mulheres com véus nas ruas, intimidavam os mercadores no Grande Bazar, entravam ruidosamente nas mesquitas nos horários de orações na sexta-feira, quando nenhum europeu tem permissão para entrar. Uma vez, num tekkeh (mosteiro) de dervixes uivantes, fui levado à galeria de visitantes, e dois oficiais alemães liam em voz alta trechos do texto sagrado em alemão durante toda a cerimônia -com a indignação furiosa dos sacerdotes...
Subimos as ruas intrincadas e sinuosas de Istambul com Youssof Efêndi, passando por trechos ladeados de pequeninas lojas armênias, sob os muros dos khans que pareciam fortalezas, construídos pelas mães de antigos sultões para o entretenimento de estrangeiros, passando por caminhos secretos através dos pátios silenciosos das grandes mesquitas, onde as crianças brincavam perto de fontes delicadamente esculpidas em mármore, à sombra de enormes árvores antigas.
Descemos ruelas que se retorciam entre as tendas de madeira dos sineiros e vendedores de tesbiehs -colares de contas-, onde vinhas verdes caíam como cascatas dos telhados. Nas amplas praças empoeiradas e castigadas pelo sol, o local dos fóruns bizantinos e os coliseus, maiores que os de Roma. Por passagens tortuosas entre casas de madeira com shahnichars que se projetavam, onde havia apenas transeuntes ocasionais -um mascate de voz esganiçada batendo em seu burro, um imã de expressão séria, mulheres andando com pressa afastando o rosto.
Quando passávamos por mulheres, Daoud começava a falar em alemão e elevava a voz.
- Elas pensam que você é um oficial alemão -disse ele, rindo - e isso faz um sucesso tremendo. Todos os haréns estão estudando alemão agora, e um tenente de Berlim ou Hanover é o ideal romântico da maioria das mulheres turcas!
Metade das pessoas que encontramos saudavam o Hoja - saudavam-no humildemente como uma pessoa influente e poderosa. No labirinto sem fim de ruas cobertas que fazem parte do Grande Bazar, um coro duplo de gritos vinha de ambos os lados:
- Youssof Efêndi, compre aqui! Veja este belo narguilé! Honre-me sendo meu cliente. Youssof Efêndi!
Na Bechistan, aquela grande praça obscura onde ficam as jóias e os metais preciosos, as armas trabalhadas em ouro e prata e os tapetes antigos, andamos de balcão em balcão, triunfantes, seguidos pelo próprio xeique da Bachistan.
- Qual é o preço disso? -perguntou o Hoja, imperiosamente.
- Uma libra turca, effedim.
- Assaltante e ladrão -respondeu nosso guia com calma. - Eu lhe darei cinco piastras. -Ele seguiu adiante, praguejando por cima de ombro: - Judeu miserável, vamos embora e não voltamos mais!
- Dez piastras! Dez piastras! -gritava o homem, enquanto o xeique o repreendia por sua falta de cortesia com o grande Youssof Efêndi...
Para mim ele regateou a um vendedor nervoso que oferecia um chiboukâmbar, de duas libras e meia para 20 piastras.
- Não me faça gritar, Youssof Efêndi! -gritou ele, com a voz no limite e o suor brilhando na testa. - Você vai me provocar um ataque!
- Vinte piastras -disse o Hoja, calmo, irredutível.
No fim da manhã sentamos no cubículo escuro atrás de uma pequena livraria grega perto do Porto Sublime, olhando para Alcorões com iluminuras feitas à mão -Daoud Bei, eu e o proprietário sagaz e simpático. Entrou um jovem policial, de casaco cinza com dragonas vermelhas e fez de astracã cinza.
Ele se aproximou de onde estávamos, suspirou profundamente e começou a contar uma longa história em turco num tom de voz melancólico. Daoud traduziu.
- Comi dejetos -disse o policial. - Fui muito humilhado. Há alguns dias vi Ferid Bei e Mahmoud Bei sentados num bar, conversando com uma menina sem véu, das ruas, que era grega. Ferid Bai se aproximou de mim e disse: "Você precisa prender Mahoud Bei". "Por quê?", perguntei. "Porque ele está falando porcarias para uma menina." Fiquei muito surpreso. "Eu não sabia que falar porcarias para uma menina era contra a lei", eu disse. "Sou amigo de Bedri Bei, o chefe de polícia", Ferid Bei disse, "e exijo que você prenda Mahmoud Bei por falar porcarias a uma menina". Assim, eu prendi Mahmoud Bei e o levei para a cadeia. Ele ficou na prisão por três dias, porque todos tinham se esquecido dele. Por fim, o guarda da cadeia telefonou para Bedri Bei e perguntou o que fazer com Mahmoud. Bedri Bei respondeu que não sabia nada sobre o homem ou o caso, então por que mantê-lo na prisão? Por isso, eles soltaram Mahmoud Bei, e ele imediatamente telefonou para Bedri Bei e fez uma reclamação sobre sua prisão. "Falar porcarias", disse ele, "não é contra a lei". Depois Bedri Bei me chamou em sua presença e me atribuiu alguns apelidos, tais como "filho de uma besta", e ameaçou me demitir. Juntos, Mahmoud Bei e eu fomos prender Feri Bei. Mas ele tinha desaparecido junto com a menina. Então Mahmoud Bei esmurrou minhas orelhas. Estou me sentindo humilhado. É como se tivesse comido dejetos. Jantamos no restaurante do Jardim Municipal de Petit Champs, em Pera, com o sonoro ragtime executado por uma banda.
O toldo listrado sobre o terraço era vistoso, banhado pela luz amarela, e as lâmpadas elétricas penduradas no alto das árvores cheias de folhas criavam obscuras sombras quadriculadas nas pessoas sentadas às mesas de ferro, bebendo, e no desfile cosmopolita de pessoas passando de um lado para o outro no jardim.



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