São Paulo, Domingo, 02 de Maio de 1999
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Paris e Nova York chegam à virada do milênio como os principais centros de irradiação da modernidade na literatura e nas artes
Capitais do século 20

NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas

Os nomes de quase todas as cidades que chegam ao fim deste milênio como centros culturais importantes seriam familiares às pessoas que viveram durante o final do século passado. O peso relativo de cada uma delas pode ter variado, mas as metrópoles que contam ainda são basicamente as mesmas: Paris, Londres, Nova York, Berlim, Roma, Madri, São Petersburgo.
O pensador alemão Walter Benjamin tornou famosa a expressão "Paris, capital do século 19", e foi mesmo nesse século que as cidades começaram a se transformar tanto nos principais núcleos produtivos quanto nas maiores aglomerações de seres humanos.
Essa tendência se confirmou no século 20 com a explosão demográfica das megalópoles do Terceiro Mundo. A urbanização havia sido prenunciada nas artes e nos outros ramos da cultura, que há séculos tinham nas cortes e na igreja seus financiadores.
A invenção da imprensa fez das cidades também o local por excelência da atividade literária, e o século passado concentrou nelas os estratos mais alfabetizados das populações. Elas consolidaram-se como lugares de produção e irradiação cultural e, aos poucos, desenvolveram-se entre elas verdadeiras teias de intercomunicação pelas quais transitaram e transitam as tendências artísticas.
A importância do francês enquanto idioma da aristocracia e da diplomacia bem como a posição privilegiada da França na geografia, economia e política européias garantiram a Paris o papel de primeira capital cultural internacional rumo à qual convergiam escritores e artistas de todo o mundo e a partir da qual suas idéias e inovações se difundiam.

NO FINAL DO SÉCULO 19
Foi desde Paris que, na segunda metade do século passado, o simbolismo conquistou terras tão remotas quanto a Rússia e o Brasil. E foi também saindo de lá que o impressionismo e o pós-impressionismo chegaram, por exemplo, até os EUA. O cubismo nasceu no começo deste século dos pincéis de artistas oriundos de diversos países, mas eles o criaram na França.
Ao mesmo tempo, outras cidades competiam com Paris por uma parcela da primazia cultural: Viena, concentrando o talento de gente que vinha de todos os cantos de um império multinacional, e Berlim, alimentada pela pujança econômica da mais dinâmica economia européia. No seu isolamento, do outro lado do Atlântico, Nova York recebia uma população diversificada de imigrantes que, na geração seguinte, ajudaria a renovar a cultura norte-americana. Uma nova arte encontrou entre esses imigrantes seus criadores e seu público: o cinema.
A Primeira Guerra Mundial abalou durante anos a Europa e fortaleceu os EUA enquanto potência econômica e cultural. O desmantelamento da monarquia austro-húngara relegou Viena a uma posição marginal. A Revolução Russa isolou parcialmente São Petersburgo e Moscou do resto do mundo, embora uma diáspora de intelectuais russos tenha passado a participar da cena cultural de outros países. (A rica produção do primeiro decênio soviético só se tornaria realmente conhecida além de suas fronteiras depois da guerra seguinte.)
No entre-guerras, Paris manteve sua centralidade e atraiu também a nata da intelectualidade norte-americana que se dirigiu à capital francesa, entre outros motivos, devido a um custo de vida mais baixo. Curiosamente, a capital financeira de então, Londres, manteve-se quase estéril culturalmente. Mas a criação da República de Weimar, em 1918, na Alemanha ajudou a fazer de Berlim uma das capitais internacionais das artes.
O fermento cultural do modernismo e da modernidade transformou, mesmo que temporariamente, várias outras cidades em importantes centros regionais, de Barcelona a Budapeste e Praga. A influência daquilo que se fez nelas pode ter sido mais restrita, mas nem por isso a qualidade estética de sua produção foi menor.

COM NAZISMO, SEM CULTURA
A ascensão do fascismo na Itália, do nazismo na Alemanha, do franquismo na Espanha, do stalinismo na União Soviética e de vários outros regimes autoritários no continente europeu decretou, para todos os efeitos, o fim de um ciclo de efervescência cultural, e a Segunda Guerra mundial pôs em risco a existência de vida civilizada no continente europeu.
Essas circunstâncias resultaram numa fuga em massa da intelectualidade continental, e grande parte desses exilados achou refúgio justamente nos EUA, onde atores, diretores e produtores foram empregados por Hollywood, filósofos, cientistas e sociólogos, pelas universidades e pelo governo. E pintores e escultores foram financiados pelos milionários locais. Não se pode exagerar o impacto dessa migração na cultura norte-americana que, desde então, tornou-se hegemônica no planeta, tendo Nova York à frente.
Ainda assim, a devastação da guerra não implicou a anunciada derrocada do Velho Mundo. Na segunda metade dos anos 40, Paris já se tornara o centro de uma nova tendência literário-filosófica, o existencialismo. Em Roma, o neo-realismo inaugurava o que viria a ser um dos cinemas mais dinâmicos e criativos de nosso tempo. O debate cultural e político recomeçou imediatamente em todos os cantos do continente onde isso era possível, e, sem saber, a Europa entrou na sua mais longa era de paz dos últimos séculos, e sua metade ocidental, num período de incomparável fartura material.
A capacidade de gerar novas modas intelectuais ininterruptamente assegurou a Paris o seu papel. Alternadamente, outras cidades também subiram, de quando em quando, ao palco. Nos anos 60, a irrupção da cultura pop ressuscitou Londres, até então decadente capital de um ex-império.
O "milagre italiano" fez de Roma e Milão pontos de referência para a arte, o design e a moda. Em 75, o fim da ditadura franquista projetou Barcelona como metrópole cultural e boêmia. A liberalização dos costumes (e das drogas) atraiu multidões de jovens rumo a Amsterdã. Nos EUA, além de Nova York e da capital do cinema, Los Angeles, São Francisco se tornou ponto de referência para a comunidade gay e para liberais em geral.

O MUNDO DESCOBRE O JAPÃO
O "milagre japonês", que transformara uma terra exótica e ocupada por tropas americanas na segunda economia mundial fez de Tóquio, particularmente nos anos 80, um "must" e contribuiu para a popularização de tudo o que fosse japonês, a começar pela culinária.
No fim dessa década, a queda do Muro de Berlim, fazendo da cidade a capital da Alemanha reunificada, veio com a promessa de devolver-lhe a importância que tivera nos anos da República de Weimar. Os eventos de 89 reacenderam também a vocação cosmopolita de Praga, de Budapeste e até mesmo de Viena.
O século 20 não teve, portanto, uma só capital, mas várias, que se alternaram no correr dos decênios. Ainda assim, duas cidades se destacaram por mais tempo e com mais vigor: Paris e Nova York. Não é à toa que ambas chegam à virada do milênio como pontos universais de referência e continuam competindo, ferrenha, mas cordialmente, pela primazia.


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