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Um reacionário na intimidade
LEON CAKOFF
da Equipe de Articulistas
Fui privilegiado pela convivência com o "professor" por
nove longos e seguidos anos.
"O professor Bardi já falou
mais contigo em um ano do que
comigo em 25", brincava o seu
fiel assistente Luiz Hossaka.
Orientado por Hossaka
-"traga tudo por escrito"-,
fui ao Bardi em 1974 oferecer
meus serviços para programar o
cinema do auditório do Masp.
Bardi me recebeu de pé e fingindo pressa -método que o veria
aplicar depois cruelmente com
visitantes indesejados ou novos
artistas candidatos a expositores.
Fui aceito para integrar a pequena equipe do professor graças à minha função jornalística
exercida nos então Diários Associados, onde era crítico de cinema e editor de variedades.
Os Diários estavam também
na origem do Masp, a mesma
origem dos cambalachos e fanfarronices do brilhante Assis
Chateaubriand.
Nas infinitas conversas matinais na sala de Bardi, no Masp,
chegamos a sonhar muitos projetos. Alguns deram certo: uma
exposição sobre a deterioração
urbana de São Paulo, outra dedicada ao Corinthians, a Mostra
Internacional de Cinema...
Percebi logo que o que mais
excitava Bardi era falar das suas
próprias bravatas. Em segundo
lugar, com uma admiração juvenil, do Chateaubriand. Usei
muito a minha escola de reportagem para ouvir deliciosas histórias, que ele contava com
inesgotável prazer. Bardi acionava a tecla do "eu" e soltava o
piloto automático.
A sua energia era surpreendente. Tinha 74 anos quando o
conheci. Sua fonte de energia?
Comer nas horas certas, dizia,
nervoso, sempre que batia
meio-dia, e dormir cedo.
Por muitos anos sonhamos fazer um filme sobre as suas aventuras pelo mundo com Chateaubriand. Chegamos a consultar o Chacrinha para o papel
principal, o que animou o "Velho Guerreiro".
P.M. Bardi, como assinava
qualquer documento do museu,
dirigia o Masp com pulso de ferro. Delegava para poucos o que
não podia fazer sozinho. Para
programar cinema eu tinha carta branca. "Não entendo de cinema", dizia.
Oficialmente, era um entusiasta. Na intimidade, negava
recursos para o progresso e era
o maior reacionário. Receava irritar os militares, o poder... Vícios da velha escola de Chateaubriand, que construiu um império jornalístico sem nunca respeitar obrigações fiscais.
Bardi não tinha o rabo preso
com o poder, mas o passado dos
Diários, misturado com a origem do Masp, parecia condená-lo por igual.
"Nós precisamos do dinheiro
público", tentava me convencer, "não podemos ficar trazendo esses filmes cubanos, socialistas", temia.
Não que eu fosse um entusiasta de tudo que ele temia, mas sabia que o Masp era útil para escudar iniciativas contra o marasmo provocado pela censura
no país. Felizmente, a batalha
com o Bardi era só interna. As
discussões sempre terminavam
com a sua felicidade de ver o auditório do Masp lotado.
Chateaubriand era seu mestre.
Tinha razão em repetir que não
havia na história empresarial
brasileira atrevimento igual.
"Qual é o outro rico brasileiro
que deixou um monumento do
porte do Masp?", desafiava.
Nos bastidores, Bardi era ciumento com o seu museu. Reclamava que eu era da camorra.
Que se ele trouxesse uma exposição de Picasso, era capaz de ter
menos repercussão do que a minha programação de cinema. E
isso antes mesmo do nascimento da Mostra, em 1977.
Brincava dizendo que ele devia ceder ao capricho dos tempos, que cinema era a arte do século, um depositário de todas as
artes, inclusive das plásticas.
"Invente aí uma coisa especial
para outubro", me disse, "que
o museu faz 30 anos e vamos comemorar".
Inventei a Mostra, e ele, maroto, me fisgou pelo entusiasmo,
com sua estratégia de desacreditar: "Vai ser impossível, você
não vai conseguir".
O seu ego inesgotável tinha
paz quando recebia a visita de
jornalistas. Adorava dar entrevistas. Gostava mesmo era de
conversar com repórteres... do
sexo feminino. Como bom velhinho, repetia as mesmas histórias. Não deve haver jornalista
que não tenha ouvido Bardi
contar que já era repórter aos 14
anos, em plena Primeira Guerra
Mundial.
Com tantas lembranças do
passado, parecia natural que
Bardi resistisse a tudo que fosse
moderno. De equipamentos a
artes. Inclusive rock. Lembrava
enfurecido o dia em que Rita Lee
havia atraído multidões ao auditório do Masp. Dizia que lá não
era lugar para tal tipo de música
e público. E não tinha nenhuma
queixa das outras multidões, as
mesmas tribos, que a minha
programação de cinema atraía.
Do passado, Bardi só desconversava o assunto da sua presença na corte mussoliniana. A sua
colaboração nos assuntos da arquitetura e das artes plásticas na
Itália fascista era um tabu.
Em fevereiro, às vésperas de
uma reportagem comemorativa
do seu 97º aniversário para a Folha, Bardi me soltou, pela primeira vez, a sua intrincada defesa sobre esse passado nebuloso:
"Mussolini estava indo muito
bem... até que vieram os antifascistas."
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