São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2008

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PERFIL DO MORADOR

Fiel ao bairro, carteiro não troca Vila Maria por nada

Levil, que percorre a pé dois quilômetros da zona norte entregando cartas, atribui à "santa água da Cantareira" sua saúde de ferro

Marlene Bergamo/Folha Imagem
Levil Xavier Augusto, da velha-guarda da Unidos de Vila Maria

WILLIAN VIEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Não há placa indicando, mas quem conhece a zona norte sabe que ali ficam as "cinco esquinas", em frente à padaria do português. Que o diga Levil Xavier Augusto, 59. Com os óculos pendurados no peito encimando a barriga de cerveja, os cabelos brancos sob o boné azul e o uniforme amarelo sem amassos, o "carteiro mais antigo da Vila Maria" ainda sobe e desce essas ruas, todo santo dia.
E ai dos que reclamam de quem faz coro com os 77% dos moradores da zona norte que, como ele, "jamais trocariam de bairro", graças ao ar, transporte e lazer. "Meu bairro é a Vila Maria. Daqui só saio para a Vila Formosa", diz Levil, com uma gargalhada que sacode os óculos. Vila Formosa é o cemitério mais perto, para onde ele está certo de ir só "lá no futuro".
Com ônibus cuspindo fumaça, a vila não é exemplo de harmonia ambiental. Mas Levil confia na "água santa da Cantareira" para explicar sua saúde -além de caminhar todos os dias os 2 km entregando cartas.
"Em 30 anos, foram 12 faltas, [todas] abonadas; 12 óbitos na família", diz Levil, orgulhoso dos dois salários, o da ativa e a aposentadoria. E olha que nunca faltou tempo para a escola de samba Unidos de Vila Maria, da qual foi vice-presidente e hoje preside a velha-guarda.
É entre os sábados de samba na padaria que passa seus quase 60 anos. Eles começaram em 20 de fevereiro de 1949, "lindo domingo de Carnaval", pelas mãos de Conchetta, parteira do bairro. Foi no número 74 da antiga rua 77, hoje rua Estevão Mélio. O nome vem da Bíblia.
"Mas meu pai era gago e não sabia ler, então Levy virou Levil", diz. Aos nove brincava nos Carnavais dos anos 1950. "O samba era marginal. Quando a polícia chegava batendo, eu saía pegando os instrumentos."
Isso no tempo em que os vizinhos se chamavam pelo nome do pai -lá ia o filho do Pavão, lá vinha a filha do Valdemar-, em que as ruas de barro existiam para as peladas. E o ponta-direita Levil chegou a jogar em Santa Catarina, no Palmeiras de Blumenau. Mas aí veio a carta da mãe, falando que as coisas não iam bem. "Decidi voltar."

A Vila e a vida
Quando conheceu a morena Fátima, 13, ele passava dos 23. O primeiro olhar foi na festa de são Lázaro. "Falei: "Menina bonita, vou [me] casar com você"." E lá se vão 30 anos. Deixou a bola e virou "agente postal".
Hoje vive com Fátima, três filhos e o neto, na casa de oito cômodos em reforma. Aceso na sala, 24 horas, fica o altar com imagens de santos de plástico junto com santa Edivirges, padroeira dos endividados. A ela Levil acende velas na segunda quinta-feira do mês na igreja Nossa Senhora dos Homens Pretos, no centro. Mas é na igreja da Candelária, ali na Vila Maria, onde foi batizado, se casou, batizou os filhos e aonde vai à missa todos os domingos.
Não é de viajar, o carteiro da vila. Restaurante, só vez ou outra. Cinema, nem se fala.
Levil senta no sofá branco da sala com autoridade de patriarca. Bastam dois chamados para a filha preparar o almoço e a irmã vir ajudá-lo com o passado.
De uma pasta preta, Levil tira a foto amarelada do pai, lavrador de café em Minas Gerais, que veio com a família para São Paulo -quando o ônibus estacionou na rua Canhoeira Mearim, mais de 40 pessoas desceram sem saber para onde ir. Descobriram que a Companhia Paulista de Terrenos S.A. vendia lotes no bairro e ali ficaram.
Logo um corintiano roxo, o pai teve azar com três dos sete filhos. Com Levil foi em 1959, quando foram assistir a São Paulo e Corinthians, para trazer o garoto para o timão.
"Mas não tive culpa", diz Levil. O placar foi de 3 a 1 para o São Paulo. "Virei são-paulino", diz o carteiro da Vila Maria.


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