São Paulo, sábado, 3 de outubro de 1998

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EDUARDO GRAEFF
Estado constituinte

A "Constituição Cidadã" de Ulysses Guimarães vai bem, obrigado. E olhe que foi duramente testada. Nestes dez anos, o Brasil passou por atribulações políticas, econômicas e sociais que, em outros tempos, poderiam ter levado à ruptura institucional. Mas em nenhum momento perigou sair dos trilhos do Estado de Direito democrático. Ao contrário: manteve-se o consenso básico em torno das regras do jogo político-eleitoral; ampliou-se na sociedade a consciência dos direitos fundamentais e a capacidade de defendê-los; o Judiciário ganhou peso no equilíbrio dos poderes, alavancado pelo Ministério Público independente e pela própria sociedade; cresceu a adesão aos -e a exigência de realização dos- objetivos de universalização do bem-estar social: educação, saúde e previdência como "direito de todos e dever do Estado", na fórmula generosa do texto constitucional.
Vista por esse lado, a Constituição de 1988 é um sucesso inegável. Numa palavra, ela democratizou o regime político, que era o propósito básico do doutor Ulysses e seus liderados. E aponta vigorosamente na direção da democratização da própria sociedade.
Por que então a história dos últimos dez anos é também a de um contínuo, penoso e até agora inacabado processo de reformas constitucionais?
Por uma razão fundamental: a realização dos ideais de cidadania plena e bem-estar social tropeça em velhas estruturas do Estado brasileiro, cuja sobrevida a Constituição garantiu com a mesma generosidade. Por isso, temos vivido, e devemos estar preparados para viver ainda algum tempo, em "estado constituinte". Um bom pesquisador ainda irá reconstituir, a partir dos anais da Constituinte, o jogo de interesses sociais e políticos e equívocos ideológicos que deu origem a essa peculiar combinação de velho e novo.
Mas isso é história. Pensando no futuro imediato, o que interessa ao país é: como desentranhar o novo do velho? Como levar adiante as reformas indispensáveis à construção de um novo Estado, adequado à nova sociedade, preservando as conquistas realmente essenciais da Constituição de 1988, que são as que dizem respeito à ordem democrática?
Prova de que a tarefa é possível, embora árdua, são as 25 emendas constitucionais aprovadas desde 1993. Entre outras coisas, elas removeram da ordem econômica os monopólios estatais que obstruíam a modernização da infra-estrutura do país; abriram caminho para a modernização dos serviços públicos a partir da reforma administrativa; enfrentaram, ainda que por medidas paliativas, os desequilíbrios do regime fiscal. Sem esquecer a reforma da Previdência, em fase final de votação na Câmara dos Deputados.
Na verdade é espantoso que se tenha conseguido aprovar tantas mudanças, tão complexas e em tão pouco tempo -de fato, menos de quatro anos, já que os resultados mais importantes foram obtidos na atual legislatura. Como se isso fosse pouco, a turbulência financeira dos últimos meses mostrou que é preciso acelerar o passo das reformas para fortalecer o Brasil no contexto internacional.
O desafio está posto. Começa pela questão fiscal, que exige soluções estruturais para além do remédio amargo, mas de efeito limitado, dos cortes de investimento e gastos correntes. Entram aí a conclusão das reformas administrativa e previdenciária e a reforma tributária, com as medidas infraconstitucionais necessárias para que tenham plena eficácia. Num segundo passo, ou paralelamente, se possível, teremos de avançar com as reformas do Judiciário e do sistema eleitoral e partidário, que não têm impacto direto na economia, mas são fundamentais para consolidar a democracia e dar ao país um horizonte claro de governabilidade.
É uma agenda pesadíssima para o final desta legislatura e os primeiros meses da próxima. Será possível dar conta dela num período tão curto?
Eu aposto que sim, por duas razões.
Primeiro, porque o Congresso Nacional, com todos os defeitos que se lhe possam apontar, justa ou injustamente, não costuma dar as costas ao país em situações de grave necessidade.
Segundo, porque certamente aprendemos alguma coisa -o próprio Congresso, o governo e a sociedade -com a experiência destes anos sobre como fazer reformas constitucionais.
Lição que parece óbvia depois, mas que teve de ser aprendida pela "via crucis" das reformas administrativa e previdenciária: quanto mais extensa e complexa a emenda, mais controvertida e, por conseguinte, mais demorada a sua tramitação. Melhor trabalhar sobre emendas mais curtas, pontuais, como nas reformas da ordem econômica, embora a hipótese de uma miniconstituinte com pauta restrita, como na proposta do deputado Antonio Kandir, não deva ser descartada.
Outra constatação óbvia, mas fundamental: tudo anda mais depressa no Congresso com o vento da opinião pública a favor. Por isso o governo e as forças políticas favoráveis às reformas, se querem acelerar sua tramitação no Congresso, devem antes de tudo redobrar o esforço de explicá-las à sociedade; o que supõe, é óbvio, a disposição de negociar com setores sociais organizados o conteúdo das propostas.
Grandes desafios correspondem a grandes oportunidades históricas. Se conseguirmos nos articular mais ampla e eficazmente -sociedade, governo e a maioria do Congresso- a favor das reformas, faremos das ondas de choque da crise internacional o impulso que faltava para abreviar o ciclo constituinte que país teria de todo modo de completar.


Eduardo Graeff, 48, é sociólogo e secretário-geral da Presidência da República.



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