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Revanche do RNA
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Esqueça os transgênicos e a geneterapia. Uma técnica com pouco mais de cinco anos de idade está fazendo pesquisadores vibrarem com a possibilidade de manipular os efeitos de genes sem mexer no genoma, abrindo novas
frentes contra o câncer e a Aids. É
o que promete a interferência de
RNA (para os íntimos, RNAi).
Embora a compreensão do fenômeno ainda esteja nos primórdios, o que não falta são adjetivos
para designá-lo: sistema imune
do genoma, técnica poderosa e
específica, varinha mágica. "Vai
dar um Nobel na certa", resume o
biólogo Tiago Campos Pereira,
24, da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (Universidade
Estadual de Campinas).
Pereira é um dos pesquisadores
brasileiros a investigar as potencialidades da técnica que, como
tantas outras descobertas importantes da biologia, começou com
o verme C. elegans.
Em 1995, os cientistas estavam
tentando silenciar genes do animal usando RNA anti-senso, uma
molécula que é a imagem invertida do RNA produzido pela célula
ao transcrever o gene que se quer
silenciar. Como é formado pelas
bases ("letras" químicas) complementares, o RNA anti-senso se
acopla ao RNA senso, formando
uma fita dupla. Isso impede que o
RNA senso seja lido pelos ribossomos e inicie a produção da proteína especificada pelo gene.
Acontece que esses primeiros
experimentos mostraram um paradoxo. Algumas sequências de
RNA senso, idêntico ao produzido pela célula, pareciam ter também o mesmo efeito silenciador.
Foi então que Andrew Fire, da
Carnegie Institution de Washington, nos Estados Unidos, suspeitou que alguma forma de contaminação pudesse estar ocorrendo
entre as duas formas de RNA.
Fire e seu colega Craig Mello, da
Universidade de Massachusetts,
se puseram a testar a hipótese da
forma mais simples possível: misturando RNA senso e anti-senso e
injetando a solução nos C. elegans. "Em retrospecto, não foi tão
inesperado assim que tenha funcionado", contou Fire à Folha.
"Funcionar" não faz justiça ao
que de fato aconteceu. O gene foi
silenciado no organismo inteiro
do C. elegans (e não só localmente, como acontecia com o RNA
anti-senso). A primeira geração
depois dos animais tratados também sofreu os efeitos do silenciamento. Tudo graças ao RNA de fita dupla formado pela mistura de
senso e anti-senso.
De lá para cá, os segredos do
mecanismo ficaram um pouco
mais claros. Pereira explica que a
RNAi se mostra tão forte e específica por estar ligada a enzimas
presentes naturalmente no organismo de quase todos os seres vivos cujas células têm núcleo (ditos "eucariotos"). Elas parecem
garantir que só o gene correspondente ao RNA de fita dupla seja silenciado. "O
mecanismo parece ser um sistema imune do transcriptoma
[atuando na transcrição, a passagem dos genes de DNA para
RNA] e também do genoma."
"Em plantas, ele atua como defesa contra alguns vírus que criam
RNA de fita dupla ao se replicar
no interior das células", diz Pereira. Fire concorda: "O que acontece na RNAi, como a quebra do
RNA de dupla fita em muitos pedaços menores, é muito semelhante ao sistema imune".
Para Pereira, a técnica é multi-uso por natureza. Graças à facilidade para desligar genes, ela pode
ser usada para estudar cada um
deles sem as complicações que
existem hoje para modificar diretamente o DNA. Seria também
possível criar plantas "transgênicas" sem alterar seus genes.
Mais promissor ainda seria o
uso da RNAi para contra-atacar
vírus, como o da Aids, ou impedir
a ação de genes envolvidos no
câncer. Testes feitos in vitro e em
camundongos, no ano passado,
mostraram resultados animadores nas duas abordagens.
Fire, porém, resume os problemas que ainda existem pela frente
numa frase: "Boas moléculas costumam virar drogas ruins". O
grande desafio é tornar a reação
sustentável, como ela se mostra
nos C. elegans, em mamíferos como o homem. Outra é fazer com
que ela atinja o órgão desejado ou,
no caso de infecções virais, funcione no organismo todo.
Pereira e sua orientadora de
doutorado, a médica Iscia Lopes
Cendes, 38, porém, não se abalam. "Daqui a dez anos, a RNAi
vai ser rotina em qualquer laboratório", afirma Cendes.
Num projeto financiado pela
Fapesp (Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo),
a dupla está usando a RNAi para
criar um modelo animal da síndrome de Rett, doença que afeta o
desenvolvimento do cérebro e é
uma das principais causas de retardo mental entre meninas. Outros grupos em São Paulo, Minas Gerais e Rio também estão testando a técnica em plantas e animais.
"Acho que as pessoas vão perceber que a técnica é muito boa e
importante, mas não é mágica",
diz Fire. Com modéstia, o pesquisador de 43 anos prefere nem
pensar no Nobel. "Para mim, isso
é irrelevante. No momento, tenho
de preparar os experimentos de
amanhã e fazer o jantar."(RJL)
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