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Polêmica e bilionária, negociação sobre Copa de 2002 divide a Fifa
Quando Havelange presidia a
CBD, o governo financiava as viagens da seleção às Copas, porque a
Fifa praticamente não ajudava.
No Mundial da França, cada
uma das 32 seleções terá US$ 500
mil para gastos com preparação,
US$ 325 de diária para cada um
dos 40 membros da delegação e
US$ 750 mil por jogo. Os finalistas
acumularão US$ 6,270 milhões.
Pode ser uma mixaria para uma
confederação como a CBF, que só
no contrato de dez anos com a Nike receberá US$ 220 milhões. Para
a Nigéria, Camarões e Jamaica,
porém, certamente não é pouco.
Até as seis confederações continentais, que não votam na Fifa, terão US$ 10 milhões cada na Copa.
Para a Uefa (União Européia de
Futebol) isso é um trocado, pouco
mais do que o atacante Ronaldinho ganha por ano com salário e
publicidade. E na Oceania, onde o
futebol tem pouquíssima tradição?
Ao ser indagado pela Folha sobre a imagem gostaria de ter daqui
a cem anos, de esportista ou de estadista que fez a Fifa maior do que
a ONU, Havelange diz: "Quero
ser lembrado como um administrador, que é o que eu sou".
Talvez só em alguns anos seja
possível fazer um balanço preciso
sobre até que ponto Havelange
contribuiu para fazer a revolução
capitalista do futebol mundial, e
da Fifa a sua maior expressão, ou
se foi só um personagem que se
adaptou com talento a seu tempo.
Quando ele chega à presidência
da Fifa, consolida-se no mundo a
dita aldeia global, com a TV passando a ser protagonista do entretenimento. É nesse contexto que o
futebol cresce como negócio.
"Havelange foi a expressão
política dos fatores de modernização do futebol mundial", diz o ex-
presidente do Flamengo Luiz Augusto Velloso, que faz um balanço
positivo da gestão do brasileiro.
Seguindo o seu conceito de
"administrador", o currículo de
Havelange é impressionante.
Quando ele assumiu, a sede da
Fifa era um sobrado onde o secretário-geral Helmut Käser morava
com a família e dois cachorros.
Sob o comando de Havelange, a
entidade construiu uma nova sede, comprou um hotel e outras
duas propriedades, montou e informatizou o maior centro de documentação sobre futebol no planeta, introduziu um centro de pesquisas médicas e começou a operar, em Neuchâtel (Suíça), a Universidade do Futebol, formando
administradores para o esporte.
Mais do que o aumento do total
de filiados, Havelange conseguiu,
em seis anos de negociações dirigidas por ele próprio, a volta da China à Fifa, sem a saída de Taiwan.
Para convencer a China, Havelange propôs que a federação de
Taiwan, parte minoritária que não
aderiu à revolução de 1949, se chamasse "Chinese Taiwan", explicitando, como queriam os comunistas, a origem daquele país.
Numa negociação com os chineses, Havelange afirma ter dito que
era mais paciente do que eles, e
por isso obteria o acordo.
Ao conversar com o comandante militar de Taiwan, o presidente
da Fifa não conseguia dobrá-lo,
porque o governo queria que sua
federação continuasse como
"China". "Eu tirei, então, da
minha pasta, uma camisa com a
etiqueta "Made in Taiwan'. E disse: "Um país é a sua marca registrada'. Então, ele aceitou."
Foi com Havelange que a Fifa expulsou a África do Sul por causa
do regime de segregação racial,
convertendo-se num ponto de
apoio importante para quem, dentro do país, lutava contra o apartheid. Agora, a África do Sul é candidata a sede da Copa de 2006.
Quando Havelange chegou à
presidência da Fifa, a entidade
promovia dois torneios a cada
quatro anos. Hoje, são dez.
A Copa de 1974 teve 16 seleções.
O aumento para 24 (Espanha-82),
no centro da plataforma de Havelange, contribuiu para a obtenção
de mais votos terceiro-mundistas.
Na França-98, o total chega a 32.
Para o presidente da Fifa, a nova
Copa reflete a expansão do futebol. Para os seus críticos, a ampliação é parte de uma política "é
dando que se recebe" -mais seleções, mais votos-, rebaixando a
qualidade técnica da competição.
O candidato de oposição à Fifa,
Johansson, não menospreza os
feitos: "O presidente Havelange
foi muito importante para a Fifa,
mas chegou a hora de sair".
A polêmica proposta é outra,
tem três letras e permite entender
como a Fifa se tornou, segundo
Havelange, a maior multinacional
do planeta: ISL, ou International
Sports Leisure, empresa de marketing que há quase 20 anos detém
o monopólio do futebol mundial.
H
á quem diga na Europa que, se Havelange cancelasse todos os contratos da Fifa com a ISL e anunciasse concorrências inéditas, a
oposição se desmancharia no ar.
Talvez seja retórica, mas a relação
Fifa-ISL pode indicar o contrário.
Ao vencer a eleição de 1974, Havelange encontrou uma entidade
que vivia do dinheiro arrecadado
com as Copas. Ex-árbitro e pesquisador das regras do futebol,
Rous vivia a promover as virtudes
do amadorismo e do "fair play".
Com a estrutura e a ideologia
que herdara, seria impossível para
Havelange cumprir o programa
desenvolvimentista com que se
elegera, principalmente o envio
das missões técnicas à Ásia e à
África e o Mundial de Juvenis.
Na reta final da campanha, assustado com o rival, Rous pediu e
recebeu ajuda de um homem influente nos bastidores esportivos:
o empresário alemão Horst Dassler, então dono da Adidas, fabricante de material esportivo.
O importante apoio de Dassler
contou votos, mas não o suficiente. Após a Copa de 1974, o alemão
se aproximaria de Havelange, tornando materialmente possível a
implementação do seu programa.
Para uma empresa como a Adidas, o primeiro plano global de expansão do futebol empresarialmente concebido pela Fifa seria
valioso para o seu crescimento.
A Adidas forneceu todo o equipamento necessário para os cursos que Havelange disseminaria.
Mas isso não bastava -faltava dinheiro para as viagens e, principalmente, o Mundial juvenil.
Com ajuda de Dassler e seu sócio
Patrick Nally -que romperiam
depois-, a Fifa obteve da Coca-
Cola o patrocínio para o primeiro
torneio de jovens, na Tunísia, em
1977 (Copa Fifa/Coca-Cola).
Em 1981, na Austrália, o patrocínio já valia US$ 600 mil, com reserva de US$ 250 mil para o caso
de a Fifa vir a ter prejuízo. Nos
contratos, idealizados por Dassler
e Havelange, passaram a ser proibidos placas ou qualquer anúncio
agenciados por estádios, ficando o
espaço para a Fifa vender.
Nascia aí o moderno formato do
marketing esportivo, numa gênese detalhadamente narrada no livro "Os Senhores dos Anéis -
Poder, Dinheiro e Drogas nas
Olimpíadas Modernas", dos ingleses Vyv Simson e Andrew Jennings, lançado no Brasil em 1992
pela editora Best Seller.
Em 1978, no Mundial da Argentina, controlada apenas parcialmente por Havelange (muitas definições ocorreram antes da sua
posse) a Coca-Cola pagou US$ 8
milhões de patrocínio, uma fábula
na história de Copas e Olimpíadas.
Em 1980, com o apoio de Dassler
e Havelange -e os "seus" votos
do Terceiro Mundo-, o espanhol
Juan Antonio Samaranch é eleito
para a presidência do COI (Comitê
Olímpico Internacional), associação da qual o presidente da Fifa é
membro desde 1963, três anos antes do ingresso de Samaranch.
Também em 1980, impressionado com o novo mercado que ajudara decisivamente a criar, Dassler abre uma agência de marketing. Em 1982, rompe com Nally e
funda a ISL, com sede em Lucerna, na Suíça da Fifa e do COI.
Os direitos de exploração da Copa do Mundo de 1982 foram vendidos para a ISL, que um ano depois assinaria o seu primeiro contrato com o COI. Hoje, a empresa
detém a exclusividade dos torneios da Fifa, da Olimpíada, dos
Mundiais de atletismo, de basquete e de outros esportes.
De acordo com os autores de
"Os Senhores dos Anéis", a porcentagem da ISL chegava a 25% do
total arrecadado nos torneios. Hoje, para as Copas, a empresa paga
uma taxa pré-estabelecida.
Foram a Fifa e o futebol, e não o
COI e os seus esportes, que revolucionaram o marketing esportivo. Só em 1984, com a influência
de Havelange, o Comitê Olímpico
Internacional se renderia à publicidade, com, simbolicamente, balões do cigarro Camel voando pelos céus de Los Angeles (EUA).
A ISL, com contratos com a Fifa
renovados até o século 21, cresce
cada vez mais. Em 1983, em reportagem sobre contrato da empresa
com o COI, o jornal norte-americano "The New York Times"
diz: "A IMG, International Management Group, declarou ter
manifestado interesse, mas nunca
foi convidada a apresentar proposta".
Em 1995, a IMG, uma das maiores empresas de marketing esportivo do mundo, apresenta uma
proposta à Fifa para comprar os
direitos da Copa de 2002 (a de 1998
é a última do contrato com a ISL).
A polêmica provocada devido a
essa negociação dividiu a entidade
em dois blocos inconciliáveis.
A Folha obteve a correspondência completa entre IMG e Fifa sobre o caso, com algumas cartas
antes não conhecidas no Brasil.
Com o alerta de "strictly confidential" ("estritamente confidencial"), em 18 de agosto de 1995,
Eric Drossart, vice-presidente da
IMG, enviou carta ao secretário-geral da Fifa, Joseph Blatter,
no cargo desde novembro de 1981.
A IMG oferecia US$ 1 bilhão pelos direitos de TV e marketing em
2002, cerca de o dobro do que a
ISL pagaria pelo Mundial de 1998.
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Ao final, havia o registro de
"com cópias" para Havelange e,
especialmente, os membros do
Comitê Executivo da entidade.
Era mais do que um detalhe: a
IMG, propositalmente, vazava
além do círculo Havelange-Blatter
a discussão da sua proposta.
Em resposta, no dia 29 de agosto, Blatter condena duramente a
distribuição da carta. Em 19 de setembro, pede detalhes da proposta
da IMG relativos a produção, distribuição, penetração e controle
das imagens de TV. Em 9 de outubro de 1995, Drossart responde,
com itens básicos, a cada questão.
Uma carta fundamental na guerra que se abriria na Fifa foi assinada por Blatter, em nome da entidade, a 15 de novembro de 1995.
Ele informa que o contrato em
vigor com o "parceiro" (ISL) estipula negociações exclusivas durante três meses, começando seis
meses antes da decisão sobre que
país será sede da Copa de 2002.
Também avisa: a escolha da sede
de 2002 será em 1º de junho. A
prioridade para a ISL, portanto,
vai até 1º de março de 1996.
Dias depois, o executivo da IMG
se reúne com dirigentes poderosos: o presidente da Confederação
Africana de Futebol, Issa Hayatou,
e o presidente da Federação Sul-
Coreana, Mong Joon Chung, da
família dona da empresa Hyundai.
Em 5 de dezembro, Drossart envia nova carta a Blatter, dando a
entender que a IMG estaria disposta a cobrir qualquer oferta.
Surpreendendo até alguns membros na cúpula da Fifa, Blatter responde a Drossart, em 15 de março
de 1996, duas semanas após o prazo para conversas exclusivas com
a ISL. Em sua mensagem, escreve:
"Nós gostaríamos de avisá-lo de
que as negociações [exclusivas"
com a ISL vão continuar".
Em 29 de março, a IMG protesta,
numa carta em que Drossart estranha nunca ter sido aberta negociação de fato sobre a proposta da
IMG. Na Europa e nos EUA, várias
reportagens dizem que a Fifa protege a ISL, ao não dar chance para
a IMG elevar a sua oferta original.
Em 26 de abril, Drossart, num
último esforço para abrir conversações, caracteriza de "cosméticos" os esforços para "proteger
a Fifa de futuras acusações de conduta injusta e imprópria".
Final da novela: a ISL pagou
mais do que o dobro da proposta
original da IMG. Afastada a IMG
de qualquer negociação com a Fifa, nunca se soube: 1) Quanto a
IMG se disporia a pagar. 2) Se não
fosse a surpreendente "intromissão" da concorrente no mundo do futebol, quanto a ISL ofereceria pelo Mundial de 2002.
Com controle do Comitê Executivo, Havelange e Blatter aprovam
o novo contrato com a ISL.
A partir de então, o presidente
da Uefa, Lennart Johansson, o
africano Issa Hayatou e outros dirigentes passam a acusar Havelange de manter relações "estranhas" com a ISL.
Na eleição deste ano para presidente da Fifa, a mais importante
questão é o posicionamento sobre
a relação entre a entidade e a ISL.
A favor de Havelange, registre-se: até hoje, nunca, apesar de
várias investigações, seus adversários conseguiram qualquer prova
de que ele tenha participação na
ISL ou em empresas que mantenham negócios com a Fifa.
Hoje, a ISL é controlada por dois
grupos: a família Dassler (51%) e o
grupo japonês Dentsu (49%).
Horst Dassler morreu de câncer
em 10 de abril de 1987, aos 51 anos.
A Adidas -faturamento de US$
2,2 bilhões anuais no ano da morte
de Dassler- hoje não pertence
mais à sua família. É a fornecedora
de uniformes da maioria das seleções que disputam a Copa-98, e é
sua a bola oficial deste Mundial.
Não há informação sobre o faturamento da ISL nem de quanto os
12 patrocinadores na França lhe
pagam. O sigilo faz parte do contrato, assim como do novo acordo
assinado em 1997 entre a Coca-
Cola e a Fifa, válido até quase o fim
da primeira década do século 21.
Sobre a relação da entidade com
a ISL, Havelange diz ser um ultraje
qualquer referência ou mesmo
suspeita de eventual procedimento obscuro de sua parte.
À parte a controvérsia sobre
eventuais favorecimentos e interesses feridos, o modelo da Fifa,
com uma entidade esportiva trabalhando com uma agência de
marketing único, fez escola em todo o mundo, até no Brasil.
A CBF (Confederação Brasileira
de Futebol) escolheu a empresa
Traffic e o COB (Comitê Olímpico
Brasileiro), a Sportsmedia. A ruptura entre Havelange e Pelé se daria, em 1993, devido à disputa entre a Traffic e a Pelé Sports & Marketing por um contrato da CBF.
Outra fórmula de Havelange na
Fifa copiada depois foi a "ajuda" às federações nacionais. Após
sofrer com o boicote de países africanos em Montreal-76, dos EUA e
aliados em Moscou-80 e da URSS e
satélites em Los Angeles-84 -os
Jogos se desvalorizaram como
produto- , o COI criou o "fundo olímpico", inspirado na Fifa.
Acabaram os boicotes, porque
eles implicariam perder a contribuição polpuda que o COI oferece.
O
modelo Havelange de Copa começou a nascer em 1978, mas o presidente da Fifa ainda estava preso a
contratos comerciais antigos.
As marcas do primeiro Mundial
de um brasileiro à frente do futebol foram a maneira suspeita como os anfitriões levaram o título e
dois assassinatos que mancharam
de vermelho os porões do torneio.
Em 24 de março de 1976, os militares deram um golpe de Estado,
derrubando a presidente constitucional, Isabelita Perón. Começava
um governo que liquidaria fisicamente milhares de oposicionistas.
Os novos governantes decidiram
manter a Copa, abrindo uma renhida disputa entre Exército e Marinha pelo controle do Ente Autárquico Mundial 78, nome oficial do
comitê organizador do torneio.
Com o apoio da Aeronáutica, o
presidente da República, general
de Exército Jorge Rafael Videla,
nomeia o general Omar Carlos Actis, seu colega de farda, para a presidência do comitê. A Marinha faz
o vice, o capitão e futuro almirante
Carlos Alberto Lacoste.
Actis e Lacoste começam a trabalhar juntos, mas divergências
sobre gastos -o general defendia
controle estrito do orçamento-
logo os afastam, num confronto
que tornou-se público, na medida
em que a censura permitiu.
No dia 19 de agosto de 1976, o
general Actis sai de casa de manhã
para trabalhar, sem seguranças. À
tarde, ele daria uma entrevista sobre austeridade orçamentária.
Às 9h30, porém, o seu carro é
metralhado por atiradores escondidos numa camioneta, e ele morre. O governo acusa o grupo Montoneros, guerrilheiros de esquerda
de inspiração peronista.
Nunca os Montoneros, ao contrário de outras mortes, assumiriam a responsabilidade por esse
atentado. Em 1993, no livro "El
Terrorismo na Argentina", cujos
autores eram ligados ao regime
militar encerrado em 1983, a morte de Actis também não aparece
como obra montonera.
Depois do fim do ciclo militar, o
almirante Lacoste foi denunciado
à Justiça como o mandante do assassinato, mas não houve provas.
Depois da morte de Actis, o governo negociou um bem-sucedido
acordo com os Montoneros para
evitar ataques durante a Copa.
Funcionária da embaixada argentina em Paris e ligada aos militares, Elena Holmberg se opôs ao
trato, conforme narram os jornalistas Andrés A. Bufali, Jorge D.
Boimvaser e Daniel G. Cecchini
em "El Libro Negro de los Mundiales de Fútbol", publicação editada em 1994, em Buenos Aires.
Holmberg havia preparado reuniões e conhecia todos os passos e
personagens das negociações. Depois do Mundial, em 20 de dezembro de 1978, ela é sequestrada. Seu
corpo aparece boiando num rio
no dia 11 de janeiro de 1979.
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