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Crítica de Pelé à CBF lança o cartola em defesa do genro Teixeira
Além do Mundial que incendiaria a Argentina numa grande festa,
os militares deixaram outra grande herança, menos "esportiva".
Actis planejara gastar US$ 70
milhões com a Copa. Lacoste desembolsou US$ 520 milhões. Todo
o tempo o almirante foi defendido
por Havelange, que dividiu com
ele a preparação do Mundial.
O brasileiro premiou Lacoste
com um convite. De 1980 a 1984,
ele foi o vice-presidente da Fifa,
afastado por gestão do novo presidente eleito, o civil Raul Alfonsin.
A Copa-78 é também marco de
um relacionamento difícil de Havelange com o futebol brasileiro.
Em 18 de junho, Brasil e Argentina empatam em 0 a 0. No dia 21, o
time do capitão Cláudio Coutinho
bate a Polônia por 3 a 1.
Horas depois, conhecendo o placar dos brasileiros, os argentinos
enfrentariam a seleção peruana,
precisando golear por pelo menos
quatro gols para superar os brasileiros no saldo e chegar à final.
A Argentina vence por 6 a 0, um
resultado para sempre suspeito.
Não há provas de que tenha havido sido suborno. Mas, em linguagem jurídica, existe um quadro indiciário, conjunto de elementos
que podem levar a uma conclusão:
1) O goleiro peruano, Ramón
Quiroga, era argentino de nascimento. Ele sempre negou qualquer irregularidade;
2) De acordo com os autores de
"El Libro Negro...", a Argentina
obteve um lugar na decisão "à
razão de pouco mais de US$ 40 mil
para cada gol", referência aos supostos US$ 250 mil que teriam sido pagos a atletas do Peru;
3) Em setembro de 1979, o técnico Antonio D'Accorso e o preparador físico Jorge Fernandes disseram que o peruano Rodolfo Manzo confessou-lhes ter recebido
US$ 50 mil para facilitar a goleada
argentina. Os três trabalharam no
clube argentino Vélez Sarsfield,
para o qual Manzo se transferiu
depois da Copa. O jogador negou;
4) Em 15 de junho de 1993, em
em Cuenca (Equador), Cubillas,
ex-atacante do Peru, indagado sobre a suposta "armação", disse
à Folha: "Aconteceu. Sei lá";
5) Outro mistério foi como a Argentina, exausta depois do 1 a 1
com a Holanda no tempo regulamentar da final, correu tanto na
prorrogação, quando fez dois gols.
No começo de 1998, um ex-integrante da comissão técnica do Boca Juniors, clube portenho no qual
trabalhou no fim da década de 70,
disse que na época a maioria dos
atletas só conseguia jogar com o
uso de estimulantes proibidos.
Depois daquele Mundial, Havelange disse que a Argentina havia
organizado a melhor Copa da história, com absoluta lisura.
À Folha, Havelange disse que o
Brasil não foi campeão por ter
aceito como bom o empate em 0 a
0 com a Argentina, ter desistido de
fazer mais gols no Peru ao chegar a
3 a 0 e porque o técnico Cláudio
Coutinho deixou Rivellino na reserva. O então presidente da CBD
era o almirante Heleno Nunes.
Em 1980, com o empresário Giulite Coutinho na CBF, já uma entidade exclusiva do futebol, Havelange proíbe o uso, no claro espírito do profissionalismo emergente
na Europa, de um raminho de café, símbolo do Instituto Brasileiro
do Café, na camisa da seleção.
Por essa época, Giulite Coutinho
recusara uma sondagem da Adidas e preferira assinar com a concorrente Topper o contrato de fornecimento do uniforme da equipe.
Em duas tentativas da CBF, Havelange se opôs à realização de um
Mundial no Brasil, barrando-o na
prática. Na votação do Comitê
Executivo da Fifa para a Copa de
1994, os EUA obtêm 10 votos, contra 7 do Marrocos e 2 do Brasil.
Em 1988, a candidatura de João
Havelange é lançada por amigos
suíços para o Prêmio Nobel da
Paz. A essa altura, ele já está empenhado em fazer do empresário do
setor financeiro Ricardo Teixeira,
seu genro, o novo presidente da
CBF, o que acaba por conseguir.
Em 1993, Havelange inicia uma
queda-de-braço com Pelé que abalaria o esporte no Brasil e no exterior, com consequências que abririam o caminho para mudanças
(potencialmente) drásticas no futebol nacional, com a nomeação
do ex-jogador para o Ministério
Extraordinário dos Esportes.
Para entender como Havelange
saiu a campo contra Pelé, que chegou a chamá-lo de "pai", é indispensável conhecer os laços do
dirigente com a sua família.
A
relação com seus pais, Joseph
Faustin e Juliette, foi decisiva na
formação de Havelange. O casal
teve três filhos: Júlio, João e Helena. Só João teve filhos, mais precisamente uma filha, Lúcia.
Com a tradição patriarcal brasileira, com o sobrenome paterno
por último e o materno primeiro,
os netos do presidente da Fifa não
levariam o nome Havelange.
Em 1974, o então presidente da
CBD diz não se preocupar com isso, que o importante é o amor que
tem pela filha. Desde sempre, Havelange é um homem família.
Ele nunca esqueceria a data da
primeira reunião na China para
tratar da volta do país à Fifa, em
maio de 1975, porque no mesmo
dia o primeiro neto comemorava
um ano e ele não pôde ir à festa.
Em dezembro de 1997, ao confirmar em Marselha (França), a 700
jornalistas, a proximidade da sua
despedida da Fifa, Havelange diz
querer tempo para ficar com os
netos. Seus irmãos já morreram.
No mesmo ano em que afirmava
aceitar com naturalidade, três gerações depois, o fim dos Havelange no Brasil, ele ganhou um presente o qual jamais esqueceria.
O genro, Ricardo Terra Teixeira,
decide inverter os sobrenomes do
primeiro filho com Lúcia Havelange, Ricardinho, o Rico. O mesmo ocorreria depois com Joana, a
Jô, e o caçula Roberto, o Beto.
Hoje, Havelange diz o que fará
ao deixar a Fifa: "O que sempre
fiz, trabalhar. Tenho a minha mulher, a minha filha, que eu adoro,
que é a coisa mais preciosa da minha vida, a única coisa que eu tenho. E tenho os meus netos, que
eu adoro, e são três: o Rico fisicamente sou eu, há uma continuidade. O Beto, eu adoro ele. A Joana é
a minha paixão".
No escritório da Fifa no Rio, a
100 m da sede da CBF, e onde as
xícaras do cafezinho têm desenhados um "J" em dourado e um
"H" em azul, Havelange tem em
sua mesa fotos da filha e da neta.
É por isso que ele jogou todas as
suas forças contra Pelé: porque o
ex-jogador e atual empresário atacou Ricardo Teixeira, um homem
que é amigo do ex-sogro até hoje,
quando já se separou de Lúcia.
Em 1989, com a ajuda de Havelange, Teixeira é eleito presidente
da CBF. A entidade passaria a ter
os seus negócios intermediados
pela agência de marketing Traffic,
de propriedade dos ex-radialistas
J. Hawilla e Kleber Leite.
A Pelé Sports & Marketing, empresa que tem o atleta do século
como sócio, compete com a Traffic no mercado esportivo.
Numa concorrência por direitos
de TV de um torneio da CBF, a
empresa de Pelé perde para a Traffic. Documentos obtidos pela Folha mostram que, nesse caso, a
proposta da Traffic era superior.
Pelé concede num hotel de
Cuenca (Equador), em junho de
1993, uma entrevista ao jornalista
Juca Kfouri que seria publicada
pela revista "Playboy".
Em declaração com repercussão
mundial, Pelé afirma haver corrupção na CBF. Mais: um sócio
seu diz que dirigentes da entidade
pediram US$ 1 milhão "por fora" pelo contrato e que a Traffic
apresentou a proposta só depois
de saber a oferta da concorrente.
Está declarada a guerra.
Até então, e o fato passou à época quase despercebido, Pelé era
contratado, assalariado da Fifa,
trabalhando como um tipo de
promotor mundial do futebol.
Num gesto que deixaria os norte-americanos impressionados,
em dezembro de 1993, Havelange
cancela a participação de Pelé no
sorteio dos grupos da Copa dos
EUA, onde o maior artilheiro de
todos os tempos jogou nos anos
70, pelo Cosmos, de Nova York.
Em 1997, em Marselha, Havelange repetiria o gesto, numa de
suas últimas decisões na Fifa. Pelé
iria ao estádio Vélodrome na condição de garoto-propaganda do
cartão de crédito Mastercard.
Na frente interna, o grupo atacado por Pelé, e que tinha em Havelange o seu maior advogado, agia.
Em 1994, Kleber Leite, sócio da
Traffic, se candidata à presidência
do Flamengo, um dos maiores
clubes do país. Em dezembro, o
ex-radialista ganha com folgas.
Num gesto raro, Havelange, presidente de honra do Fluminense,
tricolor histórico, envia carta de
apoio a Leite, que a usa como peça
fundamental de campanha.
Às vésperas do pleito, surgem
gravações clandestinas em que
Leite fala do Flamengo e outros temas. Com a voz reconhecida por
todos os que ouviram a fita, ele
trata com outra pessoa do "caso
Pelé", com uma proposta que seria "esquecida" até pelo então
ministro, em 1996, numa visita ao
Flamengo, para, ao lado de Leite,
defender a candidatura do Rio aos
Jogos Olímpicos de 2004.
A proposta: contratar uma prostituta para dizer em um programa
de TV que Pelé é impotente sexual.
Objetivo: "quebrar a credibilidade" do ex-atleta. O diálogo:
Suposto Leite: "Se juntar uma
puta e fizer uma entrevista coletiva, e ela falar que o Kleber é brocha... Tá bom, vão me sacanear,
morreu. Se uma puta fizer uma
conferência de imprensa e disser
que o Pelé é brocha, lá na Indochina vai ter manchete: "Pelé é brocha'."
Quando o interlocutor pergunta
se "vale a pena isso", o suposto
Leite responde: "Claro que vale,
vale qualquer porra. Você, para
sacanear alguém, tem que ficar
procurando coisas". Para o suposto Leite, "a intenção desse cara
[Pelé" é tumultuar, fragilizar".
O plano, nunca posto em prática, seria convidar Pelé para um
programa esportivo que vai ao ar
no Rio nos domingos à noite. Seriam chamadas as principais agências internacionais de notícias.
Então, apareceria uma mulher
afirmando ter o ex-jogador fracassado sexualmente com ela.
Na tramitação no Congresso do
projeto Pelé (que transforma clubes em empresas), o ex-ministro
falou várias vezes com Leite, que
via pontos positivos na proposta.
Enquanto isso, João Havelange
ameaçava o Brasil de não disputar
a Copa da França, caso o projeto
fosse aprovado na íntegra.
Curiosamente, o homem que revolucionou o futebol é, no Brasil,
aliado de dirigentes avessos a reformas, como o presidente da Federação de Futebol do Rio, Eduardo Viana, o Caixa D'Água.
No país de Havelange, a estrutura do futebol tem sido nefasta para
os clubes, como prova o próprio
Fluminense de Havelange, com
dívidas de mais de R$ 20 milhões.
Cinco anos após o início da briga, a Traffic está mais forte do que
nunca, negociando acordos como
o CBF-Nike. É a maior agência de
marketing do futebol brasileiro.
Pelé, por sua vez, se fortaleceu
no ministério e continua ganhando dinheiro no esporte, cedendo a
imagem a produtos de mais de 20
países. Faz campanha no mundo
inteiro pelo candidato de oposição
a Havelange, Lennart Johansson.
Em 1958, contra críticos que
consideravam Pelé muito jovem, o
presidente da CBD bancou o garoto de 17 anos na delegação.
Nos anos 70, Pelé foi importante
para Havelange conquistar na
África votos decisivos para a Fifa.
Hoje, isso é só passado.
T
alvez nem João Havelange, com
todo o seu pragmatismo, saiba o
que lhe espera no futuro. A dificuldade em prever os seus passos
decorre, especialmente, de um relógio biológico incomum.
Para a maioria dos mortais, os
anos funcionam como um descarregador de baterias, diminuindo o
ritmo, por vezes a têmpera. Havelange, ao contrário, parece comprar mais brigas, novos desafios.
Nos últimos anos, porém, o acúmulo de desafetos e o crescimento
do bolo em jogo no mercado dos
negócios do futebol lhe provocaram derrotas antes inusitadas.
Em 1996, teve de aceitar a divisão
da sede da Copa de 2002 entre Japão e Coréia do Sul, para não ver a
candidatura dos amigos japoneses
humilhantemente batida na Fifa.
No ano passado, Havelange
anunciou que amizades e favores a
ele devidos valeriam a classificação do Rio para as finais da disputa da sede da Olimpíada de 2004.
Em Lausanne, na Suíça, ofereceu um jantar para a delegação carioca -não faltou um brinde à vitória. No dia seguinte, o Rio foi
humilhado. Havelange saiu pelos
fundos, sem dar declarações.
Apesar dos raríssimos sorrisos e
da postura permanentemente enclausurada, Havelange às vezes
parece extremamente passional.
Por toda a vida, foi fiel a amigos
como Abílio d'Almeida, que de diretor da CBD transformou-se
num dos homens fortes da Fifa.
Com colegas do Fluminense, o
mesmo carinho -até hoje, muitos são convidados para a Copa e
outros eventos, com tudo pago.
Com aqueles com quem rompe,
contudo, vinga-se sumariamente.
Na final de 1990, com a Argentina vencida pela Alemanha, Maradona se uniu à torcida para xingar
a cúpula da Fifa. Coincidência ou
não, só teria problemas depois.
Com Pelé, mais do que tirá-lo de
dois sorteios de Mundiais, Havelange ousou dizer que o ex-atleta
"é algo do passado, sem nenhuma importância para o futebol".
Até hoje, o presidente da Fifa
mantém a média de 800 horas
anuais de vôo. Tem quase 30 mil
horas somadas, rivalizando com
muitos pilotos internacionais.
Nem ele pode dizer com certeza
quantos países filiados à Fifa visitou, mas já ultrapassou os 190.
Como no começo da carreira,
cuida até de detalhes quando estão
em questão interesses maiores. Na
tramitação do projeto Pelé, escreveu à Coca-Cola em busca de ajuda para um estádio do Espírito
Santo, pleito de um deputado federal do PSDB local, como mostra
documento obtido pela Folha.
Por ano, Havelange diz enviar 12
mil cartas, sem contar os impressos padronizados da Fifa. É uma
rotina alucinante para quem nasceu durante a Primeira Guerra e
atravessou a Segunda, presenciou
os movimentos militares de 1930 e
1964 e comandou o futebol mais
tempo do que, por duas vezes, Getúlio Vargas governou o Brasil.
"Nesses 24 anos, mais de 8.000
dias, esteve hasteada em Zurique a
bandeira brasileira", afirma Havelange. "De 1.400 reuniões, se faltei a quatro foi muito, porque tinha outras obrigações."
Com essa disposição, é difícil
acreditar que Havelange vá se dedicar agora só à família e à administração de um patrimônio cuja
dimensão real é desconhecida.
No Rio, ele mora com a mulher
num apart-hotel onde duas unidades foram unidas para o casal. Nos
fins-de-semana, vai para a casa de
Angra dos Reis, litoral fluminense.
Ao contrário do antigo genro Ricardo Teixeira, que até hoje o trata
por "Giovanni" na intimidade,
Havelange dispensa seguranças.
Na Fifa, continuará como presidente de honra ou em outro cargo
honorífico. Do COI, é um dos raros membros vitalícios. Poucos
crêem numa aposentadoria real.
Se, para barrar Lennart Johansson e a oposição, não fosse indispensável um novo candidato, com
um discurso relativamente renovador, como Joseph Blatter, não
gostaria João Havelange de prosseguir à frente da Fifa?
Ele deixa a entidade quando,
transformado num grande negócio, o futebol produz hábitos como uma seleção escolher adversários baseada na empresa de material esportivo que veste o duelista.
Por outro lado, o esporte mais
popular do mundo, com a sua internacionalização, pode produzir
um time como a Nigéria, campeã
olímpica em 1996, encantando o
mundo. Nos tempos pré-Havelange, isso seria impensável.
Com ele, a Fifa é a principal sentinela contra mudanças como o
uso da TV para auxiliar a arbitragem. Mas, com novidades como a
proibição da defesa do goleiro em
bolas atrasadas com os pés e a expulsão do jogador que dá carrinho
por trás, a entidade tem contribuído para melhorar o futebol.
Até 2008, formalmente fora da
presidência, Havelange terá sido o
responsável pelos contratos da Fifa. Na França, um moleton de R$
18, com motivos do Mundial e
comprado num supermercado,
tem uma etiqueta dizendo que os
direitos são da ISL -que, portanto, receberá os royalties.
O mesmo acontecerá na Ásia,
em 2002, e em 2006. Quando esta
Copa acontecer, provavelmente já
terão nascido bisnetos do homem
que revolucionou o futebol, todos
com o sobrenome Havelange.
Com o seu modo grave, mesmo
para quem lhe é próximo, ele parece à espera de ser decifrado. Na
opinião de um antigo conhecido,
"Havelange criou um personagem que talvez seja ele mesmo".
Com o que lhe resta de poder,
ainda tem história pela frente no
futebol brasileiro e internacional.
O seu último capítulo está por ser
escrito. De certo, se sabe o que o
cartola do século disse a respeito
da sua ameaça ao dirigente espanhol que lhe recusara os 400 ingressos: "Eu nasci assim, vou
morrer assim".
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