São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

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AS FINANÇAS

Os estragos provocados pela euforia coletiva da nova economia, pelo otimismo com a "exuberância irracional" das Bolsas e com seus preços extraordinários e pelos aumentos infinitos de produtividade estão causando um dano econômico infinitamente maior que os atentados de 11 de setembro de 2001, orquestrados por Osama bin Laden

Bin Laden afetou pouco a economia

VINICIUS TORRES FREIRE
EDITOR DE DINHEIRO

Algumas dúzias de executivos e banqueiros de Nova York podem ser a ameaça mais perigosa à economia mundial que o saudita Osama bin Laden e sua tropa de assassinos malucos. Um ano depois, assim é que parece o efeito dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 sobre as finanças e a produção do planeta.
Isto é, as ilusões, as fraudes e os crimes da bolha financeira (1995-2000), que ficaram muito evidentes a partir da quebra da empresa de comércio de energia norte-americana Enron, em dezembro de 2001, tiveram influência central no desempenho da economia nestes últimos 12 meses. Bin Laden causou estragos, mas não do tipo "sistêmico", como os economistas gostam de dizer.
Ainda assim, um exame mais detalhado dos acontecimentos subterrâneos das finanças nas duas semanas depois dos atentados ensina um pouco sobre as finanças globais: sobre como é grande o poder do banco central dos Estados Unidos, o Federal Reserve. Aprende-se mais uma vez como se tornou flexível, disciplinado, mais informado e, portanto, menos inseguro, o sistema financeiro internacional (que já havia dado mostras de sua resistência no "crash" da Bolsa de Nova York em 1987, e na quebra de um gigantesco fundo especulativo, o LTCM, na crise russa de 1998).
Um exame do que se seguiu meses depois, porém, mostra que a economia mundial está sujeita a riscos muito maiores que o de terrorismo. As finanças e a atividade produtiva do planeta estão sujeitas a crises tão velhas como o capitalismo industrial, tais como as de excesso de capacidade produtiva, ou ainda mais antigas, como bolhas e especulação financeira irracional.
A opinião mais comum, horas e até semanas depois dos atentados, era que Bin Laden havia sido capaz de aumentar o risco de recessão global. Um evento catastrófico, de resto dirigido contra o centro das finanças do mundo, pode causar, de imediato: a) uma queda na confiança de empresários e consumidores (que investem menos e compram menos); b) uma quebra da cadeia de pagamentos (calotes e quebras, entre bancos, empresas, fundos de investimento etc); e c) o aumento da percepção de risco, que leva investidores a colocar menos dinheiro no mercado e a exigir taxas de juros maiores.
Cada um desses fatores pode fazer a economia andar mais devagar. Combinados com força total, provocam um colapso catastrófico. Por que quase nada disso aconteceu?

O dinheiro de Greenspan
Com os ataques, a confiança do consumidor e dos empresários nos países ricos (EUA, União Européia e Japão) caiu imediatamente a um nível bem baixo, próximo ao da recessão do início dos anos 80 nos Estados Unidos ou ao da invasão do Kuait pelo Iraque, em 1990. Mas, antes mesmo do início de 2002, a confiança havia voltado a um nível até superior ao que estava em agosto de 2001.
O valor das empresas nas Bolsas (o preço das ações) recuperou-se ainda em novembro. A volatilidade das Bolsas (variação ao mesmo tempo grande, contínua e irregular do preço das ações ou de outros ativos financeiros), que pode afastar investidores dos mercados ou pelo menos torna seus negócios mais arriscados, voltou ao patamar pré-atentados mais ou menos no mesmo mês.
Ainda não há muitos estudos detalhando os motivos da melhora espetacularmente rápida do ânimo de todos esses agentes econômicos. Mas o fato de não ter havido nenhuma -nenhuma mesmo- perturbação financeira maior foi fundamental. A causa disso foi a ação coordenada pelo banco central dos Estados Unidos, o Fed, presidido por Alan Greenspan.
Basicamente, o Fed não deixou faltar dinheiro nos Estados Unidos e na Europa, relaxou regras do mercado de ações (Bolsas) e de disciplina financeira dos bancos e até cobriu cheques no valor de US$ 23 bilhões de dólares enquanto era infernal a confusão no sistema. Os bancos puderam diminuir suas reservas e foram orientados a rolar empréstimos de clientes em dificuldades. As empresas puderam recomprar suas ações acima dos limites legais permitidos (o que ajudou a Bolsa a se recuperar).
De modo direto ou indireto, por meio de vários e complicados instrumentos financeiros, na primeira semana pós-atentados, o Fed colocou, além da oferta normal de liquidez, cerca de US$ 85 bilhões (o equivalente a um sexto do PIB brasileiro) no sistema financeiro americano, sem contar as dezenas de bilhões de créditos para Europa e Canadá. Como toque final, o Fed reduziu a meta da taxa de juros básica dos EUA numa velocidade quatro vezes superior à prevista pelo mercado (até o fim do ano). Não houve quebras devido a problemas financeiros. Houve dinheiro de sobra, e rápido.

Bush ajudou?
O Tesouro dos Estados Unidos também ajudou, mas a injeção desse dinheiro na economia provavelmente teve mais influência no rápido surto de otimismo do começo de 2002 do que na contenção direta de uma catástrofe econômica pós-atentados.
Em ajuda direta, isenção de impostos e aumento de seguro-desemprego, o caixa do governo federal americano terá desembolsado, nestes últimos 12 meses, cerca US$ 110 bilhões. O gastos militares também aumentaram, 9,5%, no último trimestre do ano. Mas tal esforço parece ter sido tragado por problemas de fundo da economia americana e mundial, como tem se visto nos dois últimos trimestres deste ano.

O fim da bolha
"Poucos meses depois, os efeitos econômicos diretos [dos atentados] pareciam em grande parte ter desvanecido", afirma um dos melhores estudos sobre o caso, "As Consequências Econômicas do Terrorismo", preparado por Patrick Lenain, Marcos Bonturi e Vincent Koen para a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
O relatório anual do Bank for International Settlements (BIS), publicado em 8 de julho de 2002, um dos melhores balanços anuais da economia global, era tão otimista que não só o choque dos atentados parecia não afetar a retomada do crescimento mundial mas também os da Enron, da Argentina e o da guerra no Oriente Médio pareciam ter perdido sua força (o BIS é o Banco para Compensações Internacionais, conhecido como o "banco central dos bancos centrais", sediado na Basiléia, cidade da Suíça).
Depois de publicados esses estudos, soube-se, por meio de revisões de estatísticas, que a economia norte-americana havia se enfraquecido muito mais que o imaginado a partir do segundo trimestre de 2001.
Tendências negativas que a bolha dos mercados e de consumo (valorização excessiva e não sustentável de preços de ações e rendimentos das famílias) nublavam, como a queda dos lucros e o excesso de capacidade produtiva e de investimento, estavam em curso desde 1998.
Basicamente, havia produção e produtores demais, concorrência demais (o que baixa os lucros), emprego demais (o que aumenta os rendimentos das famílias, mas não necessariamente o das empresas) e ilusões demais sobre o volume do consumo futuro de alta tecnologia (tecnologia de informação, telefonia, computadores). O preço da energia subiu e tolheu ainda mais os lucros. Algumas empresas começaram a quebrar ou ter dificuldade de pagamentos. Em decorrência, os juros dos financiamentos de algumas empresas subiram.
Os investidores passaram a desconfiar que os preços pagos pelas ações não seriam compensados pelos rendimentos dessas ações (que derivam do lucro das empresas). O castelo começou a desmoronar. Com os investidores fugindo das Bolsas (dando início ao fim da bolha, que começou em março de 2000) , o financiamento para as empresas começou a secar. As dificuldades financeiras de grandes empresas (que apostaram na alta contínua do consumo de alta tecnologia, basicamente) aumentaram. O ciclo de euforia alimentado pelas Bolsas e pela nova economia acabou.

Os consumidores gastam
Para espanto de muitos analistas, a queda não foi violenta. Embora os europeus tenham fechado suas carteiras (não se sabe bem o motivo), os consumidores norte-americanos continuaram confiantes (isto é, gastando), apesar de sua riqueza financeira ter diminuído com a queda do preço das ações (boa parte da poupança e da previdência privada das famílias norte-americanas está nas Bolsas). A queda dos juros básicos, promovida pelo Fed, diminuiu os gastos das famílias com a hipoteca (financiamento) dos seus imóveis, cujos valores também têm subido (o que estaria compensando o "efeito pobreza" financeiro das perdas com o investimento em ações). Comprar carros novos a crédito também ficou de graça, o que manteve a indústria americana algo acima do nível de contração da produção.
Parênteses sobre a nova bolha: começa a se discutir nos EUA o perigo da bolha imobiliária. Isto é, uma valorização desmedida de propriedades imobiliárias, que serviriam de base para financiar gastos. Se desinflada, a bolha imobiliária criaria uma onda de calotes, pois parte das garantias dos financiamentos escorados em valor de imóveis desapareceriam.

Ganância infecciosa
Mas uma nova onda de choques e a ausência de uma nova onda de investimentos (como aquelas estimuladas pelo surgimento de novas tecnologias, como a internet) parecem segurar a retomada do crescimento nos Estados Unidos, motor da economia mundial.
Os novos choques foram causados por gente financeira e economicamente muito mais perigosa que Bin Laden e seus esquálidos seguidores. Trata-se dos sujeitos da "ganância infecciosa", na expressão de Alan Greenspan, os banqueiros e executivos de Wall Street. Ao longo deste ano, descobriram-se crimes financeiros claros e também como se maquiaram de maneira "quase ilegal" (e sistemática) os balanços das empresas do período da bolha.
Lucros falsos dão indicações falsas de onde seria melhor investir, pois multiplicam os preços de ações e de empresas sem que estas estejam de fato crescendo, vendendo mais. Trata-se de uma quebra de confiança nos pontos centrais para a eficácia de uma economia de mercado: o sistema de preços e os contratos.
A onda de escândalos financeiros aumentou a desconfiança, o risco e, em decorrência, o custo de investir. Diminuiu a oferta de dinheiro no sistema financeiro internacional (o que tem afetado muito o Brasil), os juros subiram. Uma economia de famílias, empresas e países endividados, com capacidade excessiva de produção, e em que aumenta a inadimplência (até por excesso de investimentos sem retorno) ficou ainda mais frágil.
Pode não sobrevir a recessão global que se anteviu depois dos atentados de Bin Laden. Mas os danos causados pela euforia coletiva da nova economia, pelo otimismo com a "exuberância irracional" das Bolsas, seus preços extraordinários e pelos aumentos infinitos de produtividade estão causando um dano infinitamente maior que o massacre terrorista de 11 de setembro de 2001.


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