São Paulo, domingo, 09 de janeiro de 2005

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A GRANDE ONDA

Os ciclos ancestrais da Terra


Não acredito que a devastação da Ásia possa dar início a uma nova era de fraternidade e colaboração dos membros da comunidade internacional; creio que isso tudo seja uma ilusão romântica


V. S. NAIPAUL
ESPECIAL PARA O "LA REPPUBLICA"

A primeira coisa que me ocorreu ao contemplar aquelas imagens foi a antigüidade da Terra. Existe alguma coisa de primordial na força que foi desencadeada. E embora estejamos sempre ocupados a nos mover velozmente por sobre e através do planeta, a catástrofe nos fez recordar que um simples tremor seu pode destruir e esvaziar todo o nosso trabalho. Acostumamo-nos a nos sentir no topo do mundo. A contemplar a vida de lá e a sentirmo-nos capazes de dominar tudo aquilo que nos circunda. Mas quando um evento natural do gênero se desencadeia, ficamos impotentes para fazer qualquer coisa. Resta-nos apenas, o mais das vezes, chorar de dor e raiva. A antigüidade da Terra não nos oferece outra saída, outra via. Percebo que como sempre nesses casos há aqueles que buscam explicações, recordam o passado, oferecem hipóteses e análises. Mas ao final o que resta depois do desastre é a tristeza, e na realidade nada há a fazer senão conviver com ela.
Nem todas as culturas reagem da mesma maneira, diante do poder devastador da natureza. E nesses últimos e dramáticos dias tivemos prova disso. Nas cenas que se desenrolaram diante de nossos olhos, nas imagens de morte e destruição que fizeram do oceano Índico o coração do mundo, pudemos ler não apenas dor, mas também dignidade.
Nós, aqui no Ocidente, não devemos esquecer que os moradores daqueles locais estão mais habituados do que nós a conviver com a força cega da Terra. Penso nos cidadãos indianos e nos de Bangladesh, acostumados à monção desde tempos imemoriais: a cada estação aguardam sua passagem destrutiva, tratando de se porem a salvo, e depois retornando às terras alagadas para reconstruir tudo aquilo que foi perdido. Os ciclos de destruição e reconstrução terminam por acostumar a alma humana à incerteza, à precariedade. Mas também a viver com maior serenidade e a valorizar mais o momento presente.
Eu contemplei muita coisa, naquelas fotografias, naquelas imagens televisivas, naquela tragédia de uma humanidade tão distante e ao mesmo tempo tão próxima. Observando e perscrutando as imagens das costas sobre as quais se abateu a onda, surpreendi-me ao perceber que os edifícios principais, os mais sólidos, se mantiveram em pé. O que terminou varrido, ao lado das vidas humanas, foi a imponente e ininterrupta cadeia da estrutura turística. As cabines de madeira, os bangalôs, as barracas, as bancas dos comerciantes. Tudo isso foi feito em pedaços pela violência incontida do mar. Quase aniquilado.
O destino que coube a grande parte daquilo que foi construído para promover o desenvolvimento do "tourist trade", do negócio do turismo, me parece demonstrar a falácia desse aspecto da vida do homem moderno: a precariedade e o aspecto transitório do turismo estarão para sempre associados à imagem da onda que arrastou as construções que o tornam possível. E essa é outra demonstração de o quanto somos novos, jovens mesmo, com relação à antigüidade da Terra que pisoteamos e que nos hospeda.
O tsunami afetou a todos nós. Ocidentais ou orientais, turistas ou locais, ricos ou pobres. Fez com que recordássemos que somos todos iguais diante da natureza. Mas não sou otimista, não acredito que a devastação da Ásia possa dar início a uma nova era de fraternidade e colaboração entre os membros da comunidade internacional. Creio que isso tudo seja uma ilusão romântica. As águas, depois da grande onda, se retiraram lentamente. Da mesma forma, assim que a emergência tiver sido superada, as coisas voltarão a ser como eram. Um novo espírito de cooperação não surgirá dessa calamidade.
Os povos do Sudeste Asiático terão de contar só com suas forças, com sua capacidade de reação. Que são diversificadas da mesma forma que são diversificados os países atingidos pelo maremoto. A Índia é um gigante econômico, potência a caminho da industrialização, e que se desenvolveu graças ao seu talento, cultura e educação. O mesmo não se aplica à Indonésia e à Tailândia, que não se educaram para o desenvolvimento e optaram por se contentar com a importação de projetos e modelos econômicos, sem criar uma estrutura original adaptada às suas exigências.
É certo que uma intervenção da comunidade internacional poderia ser útil. Um "Plano Marshall" para a área devastada pelo tsunami poderia se provar eficaz, como o original. Mas apenas se souber valorizar os recursos humanos, culturais e criativos dos países que receberem assistência. E o homem não é apenas um animal econômico, não pode se desenvolver apenas por meio de modelos industriais ou comerciais; isso é uma utopia. O homem resulta de uma série de combinações econômicas, não há como negar, mas também culturais. E a educação, sobretudo, tem enorme importância. O caráter de qualquer um de nós apresenta muitas variáveis, e é o caráter que faz com que um indivíduo, uma sociedade ou um povo queiram melhorar, queiram avançar, construir um mundo no qual se possa viver melhor.
Mas devemos ainda uma vez pôr freio ao entusiasmo, se nos leva a pensar que de um grande mal se pode derivar um bem igualmente grande. Não creio que o homem possa aprender, daquilo que aconteceu no dia de Santo Estevão, muito mais do que já sabia. A vida é absolutamente imprevisível, e a coisa mais útil que podemos fazer é aprender a conviver com essa idéia. Sem superestimar nossa sabedoria e sem pretender conhecer o imponderável. Como bem conhecem todos aqueles dentre nós que são pais: queremos sempre saber onde andam nossos filhos. Mas estamos certos de que não é possível controlá-los completamente.

Vidiadhar Surajprasad Naipaul, escritor inglês nascido em Trinidad e Tobago em 17 de agosto de 1932, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2001


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