São Paulo, sexta, 9 de outubro de 1998

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BRASIL ABRE MERCADO PARA ALCANÇAR MODERNIDADE
Os quatro anos que balançaram o "tchan"


MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo

O Brasil rompeu o ano de 1995 como se fosse ingressar numa nova era. No dia primeiro de janeiro, o recém-eleito presidente Fernando Henrique Cardoso tomou posse no Congresso Nacional e proferiu um discurso que parecia confirmar os prognósticos daqueles que viam em sua escalada ao Planalto a oportunidade de o país recuperar a auto-estima e reconciliar-se com a inteligência, a modernidade e os ideais sociais, afastados do centro do poder desde 64.
Aclamado nas urnas como profeta de um futuro de estabilidade, acolhido pelas elites como mediador virtuoso, o novo presidente era visto como uma oportunidade histórica por setores da "intelligentsia" e por ex-jovens simpatizantes de esquerda que se mostravam dispostos, na maturidade, a apoiar a reinserção do Brasil no jogo capitalista internacional.
Quatro anos depois, o entusiasmo já não é o mesmo. O sonho mágico do ingresso do país nas maravilhas da modernidade mostrou-se problemático. Se o controle da inflação e o temor de uma nova fase de desordem econômica mantiveram o presidente no poder, a desilusão com o primeiro mandato vai recolocando em cena demandas nacionalistas e gerando dissonâncias entre o próprio tucanato.
Da abertura de Collor ao discurso da nova era
Herdeiro de um Brasil que já se modificara, ainda que de modo atabalhoado, no período Collor, FHC prometia, há quatro anos, temperar a nova fase de abertura, privatizações e desregulamentações com seus presumidos compromissos com os ideais da social-democracia.
"É tempo de atualizar nosso discurso", conclamou na hora da posse, não esquecendo de acenar com a contrapartida social e cultural da nova era:
"É uma pobre ilusão achar que o mero consumo de quinquilharias vai nos fazer modernos";
"O verdadeiro grau de desenvolvimento se mede pela qualidade da atenção que um país dá à sua gente e à sua cultura";
"Ao lado da informação e do divertimento, vamos engajar nossas TVs numa verdadeira cruzada nacional pelo resgate da cidadania através do ensino, começando por uma intensa ação de alfabetização e formação cultural".
A própria universidade, inclinada a assumir posições à esquerda, com muitos de seus membros mantendo laços de militância ou simpatia com o PT, acabou dividindo-se para dar ao antigo par um desejado crédito de confiança.
Se muitos mantiveram-se na oposição ou em silêncio, houve apoios significativos, do filósofo José Arthur Giannotti ao sociólogo Francisco Weffort, o emblemático ex-petista transformado em ministro da Cultura.
Na área da produção cultural, o presidente recebeu, da primeira fila, o caloroso aplauso dos herdeiros do Cinema Novo, diretores e produtores que viram a Embrafilme ser dizimada no período Collor sem obter em troca os instrumentos para retomar o projeto de formação de mercado para o filme brasileiro -tal como fora esboçado na década de 70.
Não é surpreendente que o primeiro produto cultural a receber o selo oficial dos anos FHC tenha sido o filme "Tieta", que reuniu o diretor Carlos Diegues, a música de Caetano Veloso, um livro de Jorge Amado e a atriz Sônia Braga, símbolo feminino de exportação que esteve no auge durante aquela década.
É sintomático, também, que outro conhecido cineasta daquela geração, Arnaldo Jabor, convertido ao jornalismo, fosse desempenhar o papel de principal polemista do "petit monde" da agitação cultural tucana.
Assumindo inicialmente a defesa do projeto de Fernando Henrique e atacando a "esquerda burra", o cineasta-jornalista alinhou-se à idéia do "choque liberal" como estratégia para desencalhar o meio cultural de concepções e práticas tidas como irrealistas, atrasadas ou populistas: "Tremam, oh pálidos poetas - a arte só virá como busca do lucro". Ou: "Mercado também é cultura. A mudança econômica deve gerar um avanço estético".
O mercado global assume valores revolucionários
Tratava-se, portanto, também na esfera cultural, de assumir "o mercado", agora revestido de valores quase revolucionários. Jogava-se a pá de cal sobre o já anacrônico modelo de militância cultural de décadas passadas. Era como se o personagem "Brasilino", que ganhara fama na década de 60 denunciando a invasão "imperialista", chegasse aos anos FHC a bordo de um cupê japonês tecendo prolixas considerações sobre a inevitabilidade da globalização.
Os sinais de que o Brasil estaria pronto para tomar assento no supermercado global pareciam multiplicar-se por todas as partes.
O controle da inflação e a elevação do poder aquisitivo de parcelas excluídas do consumo geraram um surto de aquisições via crediário com efeitos importantes na cultura de massas.
Enquanto famílias pobres comiam frango e eram apresentadas ao CD player, a classe média, convidada por artifícios cambiais, ignorava o discurso presidencial e esbaldava-se no baile do consumo de quinquilharias importadas, de automóveis a frascos de geléias.
Na rua, as grandes cidades trocaram de roupa, passando a exibir luminosos de marcas "globais" e grifes antes só conhecidas em viagens ao exterior. Na esteira da abertura, a empresa nacional redesenhou-se para competir na gôndola dos novos tempos. Logotipos associados a um Brasil pesado e cartorial, como os do Bradesco e da Varig, passaram a adotar a leveza volátil do capital financeiro internacional.
No ideário tucano, as evocações a "setores estratégicos" e à proteção ao capital nacional deixaram a cena para dar lugar a uma espécie de "nacionalismo associado": ser brasileiro significava, tanto quanto possível, ser internacional e aspirar ao "Primeiro Mundo" -expressão que se tornou moeda corrente da fala, sinônimo de qualquer coisa com aparência moderna ou capaz de funcionar.
Nas diversas classes e grupos, a internacionalização cultural avançou, muitas vezes assimetricamente, segundo as características de cada contexto: o Texas consolidou-se no Brasil rural, o "rapper" virou modelo para o protesto negro da periferia urbana e setores da elite elegeram Nova York como nova capital adotiva do país -acometidos por uma síndrome de celebridade registrada quase antropologicamente por sucessivos ensaios fotográficos da revista "Caras".
Hoje, o artificialismo de algumas decisões econômicas, a crise financeira, as concessões aos setores mais atrasados da política nacional e a percepção de que as questões sociais não mereceram a devida atenção desgastam a imagem do presidente esclarecido, em que pese sua reeleição.
Incapaz de convencer a sociedade da qualidade da atenção dedicada "a sua gente e a sua cultura", o governo tucano viu surgir na TV, que deveria promover "uma cruzada nacional pelo resgate da cidadania", um de seus períodos mais grosseiros e emburrecedores.
A expectativa de elevação do gosto na cultura de mercado esbarrou no oportunismo com que a indústria atendeu à demanda de massas, resultando na proliferação de produtos abastardados, louras do "tchan", pagode, literatura esotérica, manuais de auto-ajuda e congêneres.
A pretendida nova etapa de modernização renovou, até aqui, as suspeitas sobre sua incapacidade de absorver parcelas expressivas da população, um rebanho assombrado pela exclusão social, cada vez mais ordenado pelo fenômeno da tele-evangelização.
É difícil imaginar que o país venha a ressuscitar modelos autárquicos e estatizantes de gestão, tanto quanto adotar políticas drásticas de fechamento econômico. Mas dificilmente deixará de crescer no novo mandato o antagonismo ideológico aos pressupostos, uma vez quase consensuais, que moldaram o início dos anos tucanos.



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