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BRASIL ABRE MERCADO PARA ALCANÇAR MODERNIDADE
Os quatro anos que balançaram o "tchan"
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo
O Brasil rompeu o ano de 1995
como se fosse ingressar numa nova era. No dia primeiro de janeiro,
o recém-eleito presidente Fernando Henrique Cardoso tomou posse no Congresso Nacional e proferiu um discurso que parecia confirmar os prognósticos daqueles
que viam em sua escalada ao Planalto a oportunidade de o país recuperar a auto-estima e reconciliar-se com a inteligência, a modernidade e os ideais sociais, afastados do centro do poder desde 64.
Aclamado nas urnas como profeta de um futuro de estabilidade,
acolhido pelas elites como mediador virtuoso, o novo presidente
era visto como uma oportunidade
histórica por setores da "intelligentsia" e por ex-jovens simpatizantes de esquerda que se mostravam dispostos, na maturidade, a
apoiar a reinserção do Brasil no
jogo capitalista internacional.
Quatro anos depois, o entusiasmo já não é o mesmo. O sonho
mágico do ingresso do país nas
maravilhas da modernidade mostrou-se problemático. Se o controle da inflação e o temor de uma
nova fase de desordem econômica
mantiveram o presidente no poder, a desilusão com o primeiro
mandato vai recolocando em cena
demandas nacionalistas e gerando
dissonâncias entre o próprio tucanato.
Da abertura de Collor ao discurso da nova era
Herdeiro de um Brasil que já se
modificara, ainda que de modo
atabalhoado, no período Collor,
FHC prometia, há quatro anos,
temperar a nova fase de abertura,
privatizações e desregulamentações com seus presumidos compromissos com os ideais da social-democracia.
"É tempo de atualizar nosso discurso", conclamou na hora da
posse, não esquecendo de acenar
com a contrapartida social e cultural da nova era:
"É uma pobre ilusão achar que
o mero consumo de quinquilharias vai nos fazer modernos";
"O verdadeiro grau de desenvolvimento se mede pela qualidade da atenção que um país dá à sua
gente e à sua cultura";
"Ao lado da informação e do divertimento, vamos engajar nossas
TVs numa verdadeira cruzada nacional pelo resgate da cidadania
através do ensino, começando por
uma intensa ação de alfabetização
e formação cultural".
A própria universidade, inclinada a assumir posições à esquerda,
com muitos de seus membros
mantendo laços de militância ou
simpatia com o PT, acabou dividindo-se para dar ao antigo par
um desejado crédito de confiança.
Se muitos mantiveram-se na
oposição ou em silêncio, houve
apoios significativos, do filósofo
José Arthur Giannotti ao sociólogo Francisco Weffort, o emblemático ex-petista transformado em
ministro da Cultura.
Na área da produção cultural, o
presidente recebeu, da primeira fila, o caloroso aplauso dos herdeiros do Cinema Novo, diretores e
produtores que viram a Embrafilme ser dizimada no período Collor
sem obter em troca os instrumentos para retomar o projeto de formação de mercado para o filme
brasileiro -tal como fora esboçado na década de 70.
Não é surpreendente que o primeiro produto cultural a receber o
selo oficial dos anos FHC tenha sido o filme "Tieta", que reuniu o
diretor Carlos Diegues, a música
de Caetano Veloso, um livro de
Jorge Amado e a atriz Sônia Braga,
símbolo feminino de exportação
que esteve no auge durante aquela
década.
É sintomático, também, que outro conhecido cineasta daquela geração, Arnaldo Jabor, convertido
ao jornalismo, fosse desempenhar
o papel de principal polemista do
"petit monde" da agitação cultural tucana.
Assumindo inicialmente a defesa do projeto de Fernando Henrique e atacando a "esquerda burra", o cineasta-jornalista alinhou-se à idéia do "choque liberal" como estratégia para desencalhar o meio cultural de concepções
e práticas tidas como irrealistas,
atrasadas ou populistas: "Tremam, oh pálidos poetas - a arte
só virá como busca do lucro". Ou:
"Mercado também é cultura. A
mudança econômica deve gerar
um avanço estético".
O mercado global assume valores revolucionários
Tratava-se, portanto, também
na esfera cultural, de assumir "o
mercado", agora revestido de valores quase revolucionários. Jogava-se a pá de cal sobre o já anacrônico modelo de militância cultural
de décadas passadas. Era como se
o personagem "Brasilino", que
ganhara fama na década de 60 denunciando a invasão "imperialista", chegasse aos anos FHC a bordo de um cupê japonês tecendo
prolixas considerações sobre a
inevitabilidade da globalização.
Os sinais de que o Brasil estaria
pronto para tomar assento no supermercado global pareciam multiplicar-se por todas as partes.
O controle da inflação e a elevação do poder aquisitivo de parcelas excluídas do consumo geraram
um surto de aquisições via crediário com efeitos importantes na
cultura de massas.
Enquanto famílias pobres comiam frango e eram apresentadas
ao CD player, a classe média, convidada por artifícios cambiais, ignorava o discurso presidencial e
esbaldava-se no baile do consumo
de quinquilharias importadas, de
automóveis a frascos de geléias.
Na rua, as grandes cidades trocaram de roupa, passando a exibir
luminosos de marcas "globais" e
grifes antes só conhecidas em viagens ao exterior. Na esteira da
abertura, a empresa nacional redesenhou-se para competir na
gôndola dos novos tempos. Logotipos associados a um Brasil pesado e cartorial, como os do Bradesco e da Varig, passaram a adotar a
leveza volátil do capital financeiro
internacional.
No ideário tucano, as evocações
a "setores estratégicos" e à proteção ao capital nacional deixaram a
cena para dar lugar a uma espécie
de "nacionalismo associado": ser
brasileiro significava, tanto quanto possível, ser internacional e aspirar ao "Primeiro Mundo" -expressão que se tornou moeda corrente da fala, sinônimo de qualquer coisa com aparência moderna ou capaz de funcionar.
Nas diversas classes e grupos, a
internacionalização cultural avançou, muitas vezes assimetricamente, segundo as características
de cada contexto: o Texas consolidou-se no Brasil rural, o "rapper"
virou modelo para o protesto negro da periferia urbana e setores
da elite elegeram Nova York como
nova capital adotiva do país
-acometidos por uma síndrome
de celebridade registrada quase
antropologicamente por sucessivos ensaios fotográficos da revista
"Caras".
Hoje, o artificialismo de algumas
decisões econômicas, a crise financeira, as concessões aos setores mais atrasados da política nacional e a percepção de que as
questões sociais não mereceram a
devida atenção desgastam a imagem do presidente esclarecido, em
que pese sua reeleição.
Incapaz de convencer a sociedade da qualidade da atenção dedicada "a sua gente e a sua cultura",
o governo tucano viu surgir na
TV, que deveria promover "uma
cruzada nacional pelo resgate da
cidadania", um de seus períodos
mais grosseiros e emburrecedores.
A expectativa de elevação do
gosto na cultura de mercado esbarrou no oportunismo com que a
indústria atendeu à demanda de
massas, resultando na proliferação de produtos abastardados,
louras do "tchan", pagode, literatura esotérica, manuais de auto-ajuda e congêneres.
A pretendida nova etapa de modernização renovou, até aqui, as
suspeitas sobre sua incapacidade
de absorver parcelas expressivas
da população, um rebanho assombrado pela exclusão social, cada vez mais ordenado pelo fenômeno da tele-evangelização.
É difícil imaginar que o país venha a ressuscitar modelos autárquicos e estatizantes de gestão,
tanto quanto adotar políticas
drásticas de fechamento econômico. Mas dificilmente deixará de
crescer no novo mandato o antagonismo ideológico aos pressupostos, uma vez quase consensuais, que moldaram o início dos
anos tucanos.
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