São Paulo, sexta, 9 de outubro de 1998

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NA ERA FHC TODOS SÃO EMERGENTES, COMO OS TUCANOS
Introdução à história sentimental do tucanato

OTAVIO FRIAS FILHO
Diretor de Redação

É difícil captar o retrato de uma era quando ela ainda está em curso. Mais ainda num momento como este, quando o limiar simbólico que separa o primeiro mandato fernandino do segundo coincide com uma mudança de rumos que todo mundo pressente que será importante, sem saber exatamente em que sentido. Vamos deixar o que está por acontecer de lado, já é desafio bastante "prever" o passado, tentar descobrir como ele poderá ser lido no futuro.
Em meio ao turbilhão dos fatos, duas idéias foram onipresentes nos últimos quatro anos. A primeira delas, conhecida de todo leitor habitual de jornais, é a de que governar passou a ser um "processo". A teoria do "processo" tem funções múltiplas. Ela indica que a margem de arbítrio do governo se estreitou, seja porque aumentou a dependência do país em relação ao jogo de forças internacional, seja porque se esgotou, no âmbito interno, a tolerância para com as estripulias voluntaristas que se estenderam do Cruzado (1986) à gestão Collor (1990-92).
Ao mesmo tempo, a idéia do "processo" permite conciliar um aspecto democrático (o governo seria apenas um parceiro da sociedade) e um aspecto antidemagógico (o governo não promete mundos e fundos, pelo menos não para amanhã). O trauma do impeachment colocou em moda um estilo "primeiro-mundista", presumivelmente maduro, sóbrio e sem sobressaltos, de administrar. Este é um governo de sociólogos e economistas, acostumados a pensar de forma nuançada, nem preto, nem branco, mais afeitos à morosidade das estatísticas do que a rompantes de populismo.
A outra idéia está contida numa expressão igualmente famosa nestes anos, os "emergentes". São chamados de emergentes -já em 96 orçados em 13 milhões de pessoas-aqueles que, mercê do Plano Real, ingressaram pela primeira vez no mercado de consumo; são emergentes tanto a neo-socialite Vera Loyola quanto o público que impôs o fenômeno de audiência do programa do Ratinho; são emergentes, e representam um gigantesco movimento de ascensão social, as seitas da "teologia da prosperidade"; é emergente o ultranarcisismo da revista "Caras".
Todos eles representam um pedaço da sociedade que de fato entra, aos trancos e barrancos, no mercado, seja o do dinheiro ou o da influência, mas emergentes são também os que não submergiram no salve-se quem puder de uma sociedade desigual que de repente é submetida aos rigores de um regime altamente competitivo, em que o sucesso material é a única coisa que vale.

Ontem, jovens de esquerda, hoje, srs. do establishment
Emergente foi, à sua maneira discreta, o próprio tucanato. Hoje senhores do establishment, paparicados por banqueiros e frequentadores de salões suntuosos, eles eram jovens intelectuais e tecnocratas de esquerda há cerca de 30 anos.
A esquerda, então, estava dividida em dois grandes ramos. Um deles, associado às teses do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e do PCB (Partido Comunista Brasileiro), acreditava na fórmula do nacionalismo burguês-popular, para usar a terminologia bizantina da época. Industriais e operários tinham interesses estratégicos em comum que os opunham em bloco tanto ao capital estrangeiro, dito imperialista, como à propriedade latifundiária e retrógrada.
A outra corrente, revolucionária, apegada ao precedente castrista, apontava para a associação crescente entre capital externo e burguesia nacional como fundamento da conclusão de que os "setores populares" eram empurrados para um dilema: pauperização crescente ou revolta armada. O que havia de "sui generis" na posição do futuro tucanato, na época, é que ela divergia de ambas as correntes.
Os futuros tucanos concordavam que o regime militar tocava o réquiem da aliança burguesia-operariado, que fora o esteio do pensamento nacionalista nos anos 50. Discordavam dos grupos pró-luta armada, porém, quando identificavam na nova aliança, entre multinacionais, Estado militar e empresariado nacional, não uma fonte de atraso e recolonização, mas a alavanca de um novo surto de crescimento econômico e relativa melhora dos padrões de vida da população em geral.
Vem daí a posição híbrida de Fernando Henrique e seus amigos. Do ponto de vista teórico, tinham mais identidade com os radicais, que apregoavam a falência da fórmula populista, de conciliação entre as classes que vieram à luz com a industrialização. Do ponto de vista prático, no entanto, estavam mais próximos da esquerda reformista e descriam cada vez mais da idéia de que uma ruptura revolucionária fosse factível, se é que era desejável. Essa é a chave da conversão dos tucanos de uma posição de esquerda para uma atitude "realista", "moderna" ou "razoável", conversão que a reviravolta dos anos 80 na geopolítica internacional veio tornar tão rápida quanto indolor.
Quase pedimos desculpas por utilizar uma terminologia que hoje soa bizarra e ridícula, na sua alucinação de que as classes e as "frações de classe", como se gostava de dizer então, se comportariam como assembléias reunidas para decidir sua atuação na política. Tudo isso se revelou de um simplismo patético, centenas de vidas se perderam na luta armada, mas era esse o espírito da época.
Fernando Henrique merecia ter dito, com efeito, a frase que ele tanto desmente, "esqueçam o que escrevi", quando relemos passagens, por exemplo, da sua interminável contenda com Rui Mauro Marini, teórico radical, cada um tentando se mostrar mais marxista que o outro.

Uma era de desacontecimentos, sem traumas e obras-primas
Quem não é de São Paulo talvez não tenha idéia clara de Ibiúna. A uma hora da capital, há uma enorme represa construída pela Votorantim em cujas margens foram surgindo casas de campo de arquitetos, sociólogos, executivos progressistas. É um lugar insólito, sempre frio e ventoso, onde chama a atenção que o céu e a água são da mesma cor de chumbo. Muita madeira e vidro, as casas são feitas no estilo rústico-elegante dos anos 70.
Foi numa dessas "dachas" particulares que o grupo de Fernando Henrique celebrou, seguramente em meio a queijos e vinhos, o até hoje mal-conhecido "Pacto de Ibiúna", pelo qual o príncipe da sociologia saiu candidato à suplência do Senado na chapa de Franco Montoro (o inventor do cognome "tucanos", sabe Deus o porquê). Era 1978.
A campanha galvanizou estudantes, intelectuais e uma miríade de grupos de contestação alternativa, feministas, ecologistas etc. Em 82, Montoro se elegeu governador e o grupo, agora equipe, foi com ele para o governo, enquanto Fernando Henrique ia para o Senado, onde o ex-professor de Nanterre, Cambridge e Princeton voltaria aos bancos escolares. Seus dois professores de Realpolitik foram Ulysses Guimarães e Tancredo Neves. Do primeiro ele aprendeu a se equilibrar em meio a aliados hostis entre si, beneficiando-se das desavenças. Do segundo, aprendeu que um terço da política consiste em agir por omissão (arte na qual o grande mestre entre nós foi Getúlio Vargas), a jogar parado, como se diria em futebol.
Pouco antes de ser batizado como PT, em 80, o partido de Lula quase surgiu como Partido Popular (sigla que depois seria a de Tancredo, embrião do PFL), numa aliança com os prototucanos que talvez houvesse mudado os destinos do país. Mas os destinos do tucanato e da esquerda já estavam dissociados. O sucesso veio para o grupo de Fernando Henrique, mas não de forma retumbante; exilados em seu próprio Estado pelas sete pragas da dupla Quércia-Fleury, eles quase entraram na canoa de Collor e o senador-sociólogo chegou a cogitar, dizem, de desistir da política.
Numa das evidências mais enfáticas do formidável peso que o acaso tem na política, eis que um amigo abilolado de Fernando Henrique vira presidente da República da noite para o dia, briga com sucessivos ministros da Fazenda e termina implorando, em meio à hiperinflação, pela ajuda do antigo colega de MDB e de Senado, que se torna seu primeiro-ministro. Caso único na nossa história, o empreendimento eleitoral de FHC não veio a cavalo de uma onda de protesto de fora para dentro do Estado, como nas eleições de Getúlio (1950), Juscelino (1955), Jânio (1960) e Collor (1989), mas, ao contrário, foi gestado tecnocraticamente dentro do Estado, de onde emergiu, como Plano Real, para empolgar o apoio da sociedade, consagrado na sua eleição para a Presidência, em 94.
Culturalmente, os anos tucanos têm sido uma época de "desacontecimentos", em consonância com a teoria do processo: não houve traumas, nem rupturas, nem manifestos, nem, aparentemente, obras-primas. Há uma crescente mercantilização de esferas ainda há pouco relativamente imunes à mercadoria, como a religião, a universidade, a mídia, a própria política eleitoral e, até certo ponto, a vida pessoal-afetiva, mas isso é fenômeno muito mais geral, que ultrapassa o tucanato em escala, porte e duração.
De certa forma, a atmosfera cultural se desprovincianiza, se tomarmos como índice do que é provinciano a tradicional divisão entre uma cultura de extração européia, feita e consumida por poucos, e uma cultura de tipo popular, tradicional e folclórica. Ambas vêm perdendo espaço para uma terceira modalidade de cultura, produzida em circuito industrial, regulada pelas forças de mercado e baseada na massa de consumidores jovens e urbanizados. Essa cultura é capaz de absorver a inovação, desde que ela seja domesticada de acordo com padrões de um gosto médio e redundante.
Ao mesmo tempo, a disseminação das regras do jogo capitalista funciona como pressão constante tanto no sentido de melhorar a qualidade técnica do que se produz na economia e na cultura, quanto no de disciplinar condutas. Uma intensa recodificação da vida pessoal teve início nos últimos anos: tabagismo, cinto de segurança, doação de órgãos, regulamentação do aborto legal, extinção do crime de adultério, discussão sobre o de assédio, legislação ecológica, avaliação universitária etc.
Essa mesma pressão, no entanto, força a homogeneização dos produtos simbólicos e dos comportamentos, aplainando os relevos de uma identidade nacional que ainda estava em gestação e que hoje se vê reduzida à sôfrega imitação dos paradigmas norte-americanos.



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