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NA ERA FHC TODOS SÃO EMERGENTES, COMO OS TUCANOS
Introdução à história sentimental do tucanato
OTAVIO FRIAS FILHO
Diretor de Redação
É difícil captar o retrato de uma
era quando ela ainda está em curso. Mais ainda num momento como este, quando o limiar simbólico que separa o primeiro mandato
fernandino do segundo coincide
com uma mudança de rumos que
todo mundo pressente que será
importante, sem saber exatamente
em que sentido. Vamos deixar o
que está por acontecer de lado, já é
desafio bastante "prever" o passado, tentar descobrir como ele
poderá ser lido no futuro.
Em meio ao turbilhão dos fatos,
duas idéias foram onipresentes
nos últimos quatro anos. A primeira delas, conhecida de todo leitor habitual de jornais, é a de que
governar passou a ser um "processo". A teoria do "processo"
tem funções múltiplas. Ela indica
que a margem de arbítrio do governo se estreitou, seja porque aumentou a dependência do país em
relação ao jogo de forças internacional, seja porque se esgotou, no
âmbito interno, a tolerância para
com as estripulias voluntaristas
que se estenderam do Cruzado
(1986) à gestão Collor (1990-92).
Ao mesmo tempo, a idéia do
"processo" permite conciliar um
aspecto democrático (o governo
seria apenas um parceiro da sociedade) e um aspecto antidemagógico (o governo não promete mundos e fundos, pelo menos não para
amanhã). O trauma do impeachment colocou em moda um estilo
"primeiro-mundista", presumivelmente maduro, sóbrio e sem
sobressaltos, de administrar. Este
é um governo de sociólogos e economistas, acostumados a pensar
de forma nuançada, nem preto,
nem branco, mais afeitos à morosidade das estatísticas do que a
rompantes de populismo.
A outra idéia está contida numa
expressão igualmente famosa nestes anos, os "emergentes". São
chamados de emergentes -já em
96 orçados em 13 milhões de pessoas-aqueles que, mercê do Plano Real, ingressaram pela primeira vez no mercado de consumo;
são emergentes tanto a neo-socialite Vera Loyola quanto o público
que impôs o fenômeno de audiência do programa do Ratinho; são
emergentes, e representam um gigantesco movimento de ascensão
social, as seitas da "teologia da
prosperidade"; é emergente o ultranarcisismo da revista "Caras".
Todos eles representam um pedaço da sociedade que de fato entra, aos trancos e barrancos, no
mercado, seja o do dinheiro ou o
da influência, mas emergentes são
também os que não submergiram
no salve-se quem puder de uma
sociedade desigual que de repente
é submetida aos rigores de um regime altamente competitivo, em
que o sucesso material é a única
coisa que vale.
Ontem, jovens de esquerda, hoje, srs. do establishment
Emergente foi, à sua maneira
discreta, o próprio tucanato. Hoje
senhores do establishment, paparicados por banqueiros e frequentadores de salões suntuosos, eles
eram jovens intelectuais e tecnocratas de esquerda há cerca de 30
anos.
A esquerda, então, estava dividida em dois grandes ramos. Um deles, associado às teses do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e do PCB (Partido Comunista Brasileiro), acreditava na
fórmula do nacionalismo burguês-popular, para usar a terminologia bizantina da época. Industriais e operários tinham interesses estratégicos em comum que os
opunham em bloco tanto ao capital estrangeiro, dito imperialista,
como à propriedade latifundiária
e retrógrada.
A outra corrente, revolucionária, apegada ao precedente castrista, apontava para a associação
crescente entre capital externo e
burguesia nacional como fundamento da conclusão de que os
"setores populares" eram empurrados para um dilema: pauperização crescente ou revolta armada. O que havia de "sui generis"
na posição do futuro tucanato, na
época, é que ela divergia de ambas
as correntes.
Os futuros tucanos concordavam que o regime militar tocava o
réquiem da aliança burguesia-operariado, que fora o esteio do
pensamento nacionalista nos anos
50. Discordavam dos grupos
pró-luta armada, porém, quando
identificavam na nova aliança, entre multinacionais, Estado militar
e empresariado nacional, não uma
fonte de atraso e recolonização,
mas a alavanca de um novo surto
de crescimento econômico e relativa melhora dos padrões de vida
da população em geral.
Vem daí a posição híbrida de
Fernando Henrique e seus amigos.
Do ponto de vista teórico, tinham
mais identidade com os radicais,
que apregoavam a falência da fórmula populista, de conciliação entre as classes que vieram à luz com
a industrialização. Do ponto de
vista prático, no entanto, estavam
mais próximos da esquerda reformista e descriam cada vez mais da
idéia de que uma ruptura revolucionária fosse factível, se é que era
desejável. Essa é a chave da conversão dos tucanos de uma posição de esquerda para uma atitude
"realista", "moderna" ou "razoável", conversão que a reviravolta dos anos 80 na geopolítica
internacional veio tornar tão rápida quanto indolor.
Quase pedimos desculpas por
utilizar uma terminologia que hoje soa bizarra e ridícula, na sua
alucinação de que as classes e as
"frações de classe", como se gostava de dizer então, se comportariam como assembléias reunidas
para decidir sua atuação na política. Tudo isso se revelou de um
simplismo patético, centenas de
vidas se perderam na luta armada,
mas era esse o espírito da época.
Fernando Henrique merecia ter
dito, com efeito, a frase que ele
tanto desmente, "esqueçam o que
escrevi", quando relemos passagens, por exemplo, da sua interminável contenda com Rui Mauro
Marini, teórico radical, cada um
tentando se mostrar mais marxista
que o outro.
Uma era de desacontecimentos, sem traumas e obras-primas
Quem não é de São Paulo talvez
não tenha idéia clara de Ibiúna. A
uma hora da capital, há uma enorme represa construída pela Votorantim em cujas margens foram
surgindo casas de campo de arquitetos, sociólogos, executivos progressistas. É um lugar insólito,
sempre frio e ventoso, onde chama a atenção que o céu e a água
são da mesma cor de chumbo.
Muita madeira e vidro, as casas
são feitas no estilo rústico-elegante dos anos 70.
Foi numa dessas "dachas" particulares que o grupo de Fernando
Henrique celebrou, seguramente
em meio a queijos e vinhos, o até
hoje mal-conhecido "Pacto de
Ibiúna", pelo qual o príncipe da
sociologia saiu candidato à suplência do Senado na chapa de
Franco Montoro (o inventor do
cognome "tucanos", sabe Deus o
porquê). Era 1978.
A campanha galvanizou estudantes, intelectuais e uma miríade
de grupos de contestação alternativa, feministas, ecologistas etc.
Em 82, Montoro se elegeu governador e o grupo, agora equipe, foi
com ele para o governo, enquanto
Fernando Henrique ia para o Senado, onde o ex-professor de
Nanterre, Cambridge e Princeton
voltaria aos bancos escolares. Seus
dois professores de Realpolitik foram Ulysses Guimarães e Tancredo Neves. Do primeiro ele aprendeu a se equilibrar em meio a aliados hostis entre si, beneficiando-se das desavenças. Do segundo, aprendeu que um terço da política consiste em agir por omissão
(arte na qual o grande mestre entre nós foi Getúlio Vargas), a jogar
parado, como se diria em futebol.
Pouco antes de ser batizado como PT, em 80, o partido de Lula
quase surgiu como Partido Popular (sigla que depois seria a de
Tancredo, embrião do PFL), numa aliança com os prototucanos
que talvez houvesse mudado os
destinos do país. Mas os destinos
do tucanato e da esquerda já estavam dissociados. O sucesso veio
para o grupo de Fernando Henrique, mas não de forma retumbante; exilados em seu próprio Estado
pelas sete pragas da dupla Quércia-Fleury, eles quase entraram na
canoa de Collor e o senador-sociólogo chegou a cogitar, dizem, de
desistir da política.
Numa das evidências mais enfáticas do formidável peso que o
acaso tem na política, eis que um
amigo abilolado de Fernando
Henrique vira presidente da República da noite para o dia, briga
com sucessivos ministros da Fazenda e termina implorando, em
meio à hiperinflação, pela ajuda
do antigo colega de MDB e de Senado, que se torna seu primeiro-ministro. Caso único na nossa
história, o empreendimento eleitoral de FHC não veio a cavalo de
uma onda de protesto de fora para
dentro do Estado, como nas eleições de Getúlio (1950), Juscelino
(1955), Jânio (1960) e Collor
(1989), mas, ao contrário, foi gestado tecnocraticamente dentro do
Estado, de onde emergiu, como
Plano Real, para empolgar o apoio
da sociedade, consagrado na sua
eleição para a Presidência, em 94.
Culturalmente, os anos tucanos
têm sido uma época de "desacontecimentos", em consonância
com a teoria do processo: não
houve traumas, nem rupturas,
nem manifestos, nem, aparentemente, obras-primas. Há uma
crescente mercantilização de esferas ainda há pouco relativamente
imunes à mercadoria, como a religião, a universidade, a mídia, a
própria política eleitoral e, até certo ponto, a vida pessoal-afetiva,
mas isso é fenômeno muito mais
geral, que ultrapassa o tucanato
em escala, porte e duração.
De certa forma, a atmosfera cultural se desprovincianiza, se tomarmos como índice do que é
provinciano a tradicional divisão
entre uma cultura de extração européia, feita e consumida por poucos, e uma cultura de tipo popular,
tradicional e folclórica. Ambas
vêm perdendo espaço para uma
terceira modalidade de cultura,
produzida em circuito industrial,
regulada pelas forças de mercado e
baseada na massa de consumidores jovens e urbanizados. Essa cultura é capaz de absorver a inovação, desde que ela seja domesticada de acordo com padrões de um
gosto médio e redundante.
Ao mesmo tempo, a disseminação das regras do jogo capitalista
funciona como pressão constante
tanto no sentido de melhorar a
qualidade técnica do que se produz na economia e na cultura,
quanto no de disciplinar condutas. Uma intensa recodificação da
vida pessoal teve início nos últimos anos: tabagismo, cinto de segurança, doação de órgãos, regulamentação do aborto legal, extinção do crime de adultério, discussão sobre o de assédio, legislação
ecológica, avaliação universitária
etc.
Essa mesma pressão, no entanto, força a homogeneização dos
produtos simbólicos e dos comportamentos, aplainando os relevos de uma identidade nacional
que ainda estava em gestação e
que hoje se vê reduzida à sôfrega
imitação dos paradigmas norte-americanos.
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