São Paulo, sexta, 9 de outubro de 1998

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A EMERGENTE CULTURA DE MASSA É ESTRIDENTE E ARRIVISTA
Bregas e bárbaros são os novos-ricos da cultura

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião

Carla Perez e Ratinho, símbolos da era FHC? A simples sugestão de que essa dupla possa ser uma espécie de síntese ou espelho privilegiado do que aconteceu com o mercado de entretenimento e até com o país ao longo dos quatro anos do primeiro ciclo fernandino é algo que pode ofender a boa-fé de muita gente animada com a "efervescência" cultural desses últimos anos.
Dependendo do ângulo que se olhe, no entanto, essa dupla -a Carla do Tchan e o Carlos do cassetete-, mais do que divertida, brega, bárbara ou simplesmente desprezível, pode ser antes de tudo incômoda.
Vista, por exemplo, pelo ângulo da nossa suposta modernidade, desde sempre tão desejada quanto inalcançável, e apenas há quatro anos prometida como algo viável por uma certa elite paulista -que nos vendeu o sonho da moeda estável como porta de acesso ao Primeiro Mundo-, essa dupla é uma pedra no sapato. Ela exprime em negativo, por assim dizer, a frustração de uma certa idéia de modernidade, ou, antes, a ilusão à aspiração a uma certa modernidade que inebria nossa pequena elite.
Um pouco talvez como um personagem de Paulo Emilio Sales Gomes, que, depois de uma sequência de reveses na vida, reconhece macambúzio, ainda que irônico, que seus "sonhos juvenis de suprema elegância, poder e cultura tinham se reduzido a um nível bem paulista".
De fato, Carla Perez ou Ratinho não parecem caber na modernidade tucana nem ter relação com esse país de professores eméritos, burocratas poliglotas e ex-exilados educados em Santiago ou Paris. O fato, porém, é que a obra histórica dessa elite progressista está muito melhor representada por Ratinho e Carla Perez, pela nova TV e pela nova música popular do que pela onda de redescoberta estética do Brasil profundo, que vai da "Central do Brasil" à Bienal antropofágica, passando por coisas como o novo romance de Diogo Mainardi, "Contra o Brasil", que talvez possa ser visto como sintoma ideológico do segundo mandato.

A cultura e o poder de consumo do andar de baixo
Vejamos mais de perto o que aconteceu com a cultura de massas propriamente dita -não a tucana-, tomando como exemplos seus dois indicadores mais importantes, a TV e a música.
O Real, como se sabe, aumentou o poder aquisitivo do andar de baixo da sociedade, sobretudo durante os seus dois primeiros anos, de 94 a 96. Não chegou a distribuir renda (que é coisa diferente de aumento de poder aquisitivo, mas tende a ser confundido com ele), o que também se sabe mas quase sempre se esconde. Pois bem.
O caderno "Mais!", desta Folha, percebeu o impacto disso na esfera cultural e fez em abril último uma extensa reportagem de capa cujo título era "Cultura de Massas Emergente". Tratava-se então de procurar uma explicação para fenômenos como Carla Perez e Ratinho, entendidos não como pessoas empíricas, mas, antes, como encarnações de um processo social, para abusar do sociologuês. Os números falam em milhões.
Desde o início do Real, foram comprados cerca de 28 milhões de novos televisores no país. Em torno de 6,3 milhões de lares adquiriram sua primeira TV nesse período. Para se ter uma base de comparação, em 93, há apenas cinco anos, 75% dos lares com energia elétrica tinham aparelho de TV, sendo 50% deles em cores e 25% em preto-e-branco. No final de 97, 92,6% das moradias com energia tinham TV, sendo 82,4% delas em cores e 10,2% em PB. Cerca de 88% das TVs já tinham controle remoto -a praga e a salvação de anunciantes e emissoras.
A isso é preciso agregar o fato de que nos últimos anos as classes A e B passaram a assistir TV por assinatura. Calcula-se que haja hoje no país algo em torno de 2,5 milhões de espectadores de TV paga. Diante dos dados, a explicação do caderno parecia irrefutável: Ratinho e seus clones estariam atendendo com seus shows de horrores à demanda da choldra recém-integrada ao mercado televisivo, ainda que precariamente, à base de muito carnê de prestação e doses cavalares de inadimplência, enquanto a elite estaria se refugiando progressivamente na "personal TV" por assinatura.
Com a indústria fonográfica não foi muito diferente. Desde o Real, 20 milhões de aparelhos de som novos foram vendidos, entre CD players e rádio-gravadores. Segundo cálculos de uma megagravadora, uma massa de pelo menos 5 milhões de pessoas que nunca tinha comprado seu aparelho de som conseguiu fazê-lo depois do Real. A venda de CDs e fitas cassetes teria dobrado entre 94 e 97, quando então se superou a casa dos 100 milhões de unidades. Apenas o grupo É o Tchan vendeu 7 milhões de cópias de seus três primeiros discos.
O caso da música é curioso porque sua incorporação pela indústria do entretenimento em escala inédita se deu por meio de um tipo de reapropriação mercantil de ritmos ou expressões da cultura popular, expressões estas desfiguradas pela lógica homogeneizadora da própria indústria. Não parece equivocado pensar que o pagode, por exemplo, é a versão estandardizada do samba do morro; a axé music e variantes, um sucedâneo dos ritmos afro da Bahia; e o neo-sertanejo, uma versão massificada da cultura caipira.
Quando se pensa, além disso, que TV e música popular formam um amálgama e se alimentam reciprocamente (é só assistir aos programas de auditório), o círculo se fecha sobre si mesmo: o Real teria feito com que uma massa imensa de brasileiros desconhecidos do Brasil, porque historicamente à margem da cultura ou confinados pela cultura hegemônica a seus guetos, viesse à tona, mostrasse a sua cara.
Isso, no entanto, é apenas parte do problema. Para tentar ao menos equacioná-lo por inteiro, é preciso contrariar um pouco a evidência de que a TV aberta e a TV paga reproduzem o apartheid social brasileiro e refletir sobre uma outra evidência, menos lembrada: Ratinho e cia. não cativam apenas o povão, mas são consumidos como diversão por grande parcela da elite, sobretudo os mais jovens, que devem ver naquilo um cinema trash, mas se esquecem ou não dão importância ao fato de que a matéria-prima, o enredo e os personagens são reais e brasileiros.
Em relação à música neobrega isso é ainda mais evidente. Leandro e Leonardo, pagodeiros etc. não são populares apenas no sentido de que atraem a massa pobre integrada à indústria cultural, mas também porque essa canção subpopular se generalizou pela sociedade e hoje é consumida avidamente nos Jardins, em festinhas de gente fina, e chegou ao ponto de representar a cultura nacional durante aquela patacoada exibida durante a Copa do Mundo pela Globo.
Essa cultura de massas emergente da era FHC é ruidosa, estridente e sobretudo arrivista. Os novos ídolos nacionais são os novos-ricos da cultura. Fazem questão de ostentar riqueza, exibem o carrão importado, reforçam a todo momento a idéia de que felicidade é sinônimo de ascensão material e realização pessoal.
Talvez seja por aqui que se possa estudar melhor a relação entre a aposta econômica do tucanato, que assumiu como positiva a redução do país a um "mercado emergente", e a cultura emergente da era FHC, cuja aposta é eminentemente econômica.



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