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A EMERGENTE CULTURA DE MASSA É ESTRIDENTE E ARRIVISTA
Bregas e bárbaros são os novos-ricos da cultura
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor-adjunto de Opinião
Carla Perez e Ratinho, símbolos
da era FHC? A simples sugestão de
que essa dupla possa ser uma espécie de síntese ou espelho privilegiado do que aconteceu com o
mercado de entretenimento e até
com o país ao longo dos quatro
anos do primeiro ciclo fernandino
é algo que pode ofender a boa-fé
de muita gente animada com a
"efervescência" cultural desses
últimos anos.
Dependendo do ângulo que se
olhe, no entanto, essa dupla -a
Carla do Tchan e o Carlos do cassetete-, mais do que divertida,
brega, bárbara ou simplesmente
desprezível, pode ser antes de tudo
incômoda.
Vista, por exemplo, pelo ângulo
da nossa suposta modernidade,
desde sempre tão desejada quanto
inalcançável, e apenas há quatro
anos prometida como algo viável
por uma certa elite paulista -que
nos vendeu o sonho da moeda estável como porta de acesso ao Primeiro Mundo-, essa dupla é uma
pedra no sapato. Ela exprime em
negativo, por assim dizer, a frustração de uma certa idéia de modernidade, ou, antes, a ilusão à aspiração a uma certa modernidade
que inebria nossa pequena elite.
Um pouco talvez como um personagem de Paulo Emilio Sales
Gomes, que, depois de uma sequência de reveses na vida, reconhece macambúzio, ainda que
irônico, que seus "sonhos juvenis
de suprema elegância, poder e cultura tinham se reduzido a um nível bem paulista".
De fato, Carla Perez ou Ratinho
não parecem caber na modernidade tucana nem ter relação com esse país de professores eméritos,
burocratas poliglotas e ex-exilados educados em Santiago ou Paris. O fato, porém, é que a obra
histórica dessa elite progressista
está muito melhor representada
por Ratinho e Carla Perez, pela
nova TV e pela nova música popular do que pela onda de redescoberta estética do Brasil profundo,
que vai da "Central do Brasil" à
Bienal antropofágica, passando
por coisas como o novo romance
de Diogo Mainardi, "Contra o
Brasil", que talvez possa ser visto
como sintoma ideológico do segundo mandato.
A cultura e o poder de consumo do andar de baixo
Vejamos mais de perto o que
aconteceu com a cultura de massas propriamente dita -não a tucana-, tomando como exemplos
seus dois indicadores mais importantes, a TV e a música.
O Real, como se sabe, aumentou
o poder aquisitivo do andar de
baixo da sociedade, sobretudo durante os seus dois primeiros anos,
de 94 a 96. Não chegou a distribuir
renda (que é coisa diferente de aumento de poder aquisitivo, mas
tende a ser confundido com ele), o
que também se sabe mas quase
sempre se esconde. Pois bem.
O caderno "Mais!", desta Folha, percebeu o impacto disso na
esfera cultural e fez em abril último uma extensa reportagem de
capa cujo título era "Cultura de
Massas Emergente". Tratava-se
então de procurar uma explicação
para fenômenos como Carla Perez
e Ratinho, entendidos não como
pessoas empíricas, mas, antes, como encarnações de um processo
social, para abusar do sociologuês.
Os números falam em milhões.
Desde o início do Real, foram
comprados cerca de 28 milhões de
novos televisores no país. Em torno de 6,3 milhões de lares adquiriram sua primeira TV nesse período. Para se ter uma base de comparação, em 93, há apenas cinco
anos, 75% dos lares com energia
elétrica tinham aparelho de TV,
sendo 50% deles em cores e 25%
em preto-e-branco. No final de 97,
92,6% das moradias com energia
tinham TV, sendo 82,4% delas em
cores e 10,2% em PB. Cerca de 88%
das TVs já tinham controle remoto -a praga e a salvação de anunciantes e emissoras.
A isso é preciso agregar o fato de
que nos últimos anos as classes A e
B passaram a assistir TV por assinatura. Calcula-se que haja hoje
no país algo em torno de 2,5 milhões de espectadores de TV paga.
Diante dos dados, a explicação do
caderno parecia irrefutável: Ratinho e seus clones estariam atendendo com seus shows de horrores à demanda da choldra recém-integrada ao mercado televisivo, ainda que precariamente, à
base de muito carnê de prestação e
doses cavalares de inadimplência,
enquanto a elite estaria se refugiando progressivamente na
"personal TV" por assinatura.
Com a indústria fonográfica não
foi muito diferente. Desde o Real,
20 milhões de aparelhos de som
novos foram vendidos, entre CD
players e rádio-gravadores. Segundo cálculos de uma megagravadora, uma massa de pelo menos
5 milhões de pessoas que nunca tinha comprado seu aparelho de
som conseguiu fazê-lo depois do
Real. A venda de CDs e fitas cassetes teria dobrado entre 94 e 97,
quando então se superou a casa
dos 100 milhões de unidades. Apenas o grupo É o Tchan vendeu 7
milhões de cópias de seus três primeiros discos.
O caso da música é curioso porque sua incorporação pela indústria do entretenimento em escala
inédita se deu por meio de um tipo
de reapropriação mercantil de ritmos ou expressões da cultura popular, expressões estas desfiguradas pela lógica homogeneizadora
da própria indústria. Não parece
equivocado pensar que o pagode,
por exemplo, é a versão estandardizada do samba do morro; a axé
music e variantes, um sucedâneo
dos ritmos afro da Bahia; e o
neo-sertanejo, uma versão massificada da cultura caipira.
Quando se pensa, além disso,
que TV e música popular formam
um amálgama e se alimentam reciprocamente (é só assistir aos
programas de auditório), o círculo
se fecha sobre si mesmo: o Real teria feito com que uma massa
imensa de brasileiros desconhecidos do Brasil, porque historicamente à margem da cultura ou
confinados pela cultura hegemônica a seus guetos, viesse à tona,
mostrasse a sua cara.
Isso, no entanto, é apenas parte
do problema. Para tentar ao menos equacioná-lo por inteiro, é
preciso contrariar um pouco a evidência de que a TV aberta e a TV
paga reproduzem o apartheid social brasileiro e refletir sobre uma
outra evidência, menos lembrada:
Ratinho e cia. não cativam apenas
o povão, mas são consumidos como diversão por grande parcela da
elite, sobretudo os mais jovens,
que devem ver naquilo um cinema
trash, mas se esquecem ou não
dão importância ao fato de que a
matéria-prima, o enredo e os personagens são reais e brasileiros.
Em relação à música neobrega
isso é ainda mais evidente. Leandro e Leonardo, pagodeiros etc.
não são populares apenas no sentido de que atraem a massa pobre
integrada à indústria cultural, mas
também porque essa canção subpopular se generalizou pela sociedade e hoje é consumida avidamente nos Jardins, em festinhas de
gente fina, e chegou ao ponto de
representar a cultura nacional durante aquela patacoada exibida
durante a Copa do Mundo pela
Globo.
Essa cultura de massas emergente da era FHC é ruidosa, estridente
e sobretudo arrivista. Os novos
ídolos nacionais são os novos-ricos da cultura. Fazem questão de
ostentar riqueza, exibem o carrão
importado, reforçam a todo momento a idéia de que felicidade é
sinônimo de ascensão material e
realização pessoal.
Talvez seja por aqui que se possa
estudar melhor a relação entre a
aposta econômica do tucanato,
que assumiu como positiva a redução do país a um "mercado
emergente", e a cultura emergente da era FHC, cuja aposta é eminentemente econômica.
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