São Paulo, sexta, 9 de outubro de 1998

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A indústria fictícia de cinema

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

Depois da terra arrasada a que o governo Collor reduziu o cinema brasileiro, qualquer coisa que Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso fizessem seria lucro.
A Lei do Audiovisual, criada na gestão Itamar (em 1993) e implantada efetivamente no governo FHC, tirou a produção cinematográfica do sufoco e estabeleceu uma política mínima para o setor.
Beneficiadas pela renúncia fiscal, as empresas passaram a poder investir em filmes sem correr nenhum risco. Com a lei, elas abatem dos impostos o investimento e ainda têm o chamado "retorno de mídia" por verem seu nome associado a um bem cultural.
Num primeiro momento, a nova política pareceu transformar o antigo deserto numa "terra prometida". Dezenas de filmes passaram a ser produzidos anualmente, velhos cineastas voltaram a filmar, uma nova geração de realizadores apareceu. A produção se descentralizou e a qualidade técnica média dos filmes elevou-se consideravelmente. Além disso, o cinema brasileiro voltou a marcar presença no cenário internacional.
Uma situação paradisíaca, certo? Errado. Ao privilegiar, como medida de emergência, a retomada da produção, a Lei do Audiovisual negligenciou dois aspectos essenciais da equação cinematográfica: a distribuição e a exibição.
Além disso, por pressões diretas das emissoras, deixou de lado a questão crucial da relação entre cinema e TV. Resultado: os filmes são feitos, mas -com raras exceções- pouca gente os vê.
O mercado exibidor elitizou-se nos últimos anos com o fechamento dos cinemas mais populares e o aumento do preço médio do ingresso (de cerca de US$ 1, nos anos 70, para US$ 5, hoje).
Contam-se nos dedos de uma única mão os filmes brasileiros que, nos últimos anos, conseguiram ultrapassar a marca de 1 milhão de espectadores: "Carlota Joaquina", "O Quatrilho", "O Noviço Rebelde", "Central do Brasil".
Se "Carlota Joaquina", de Carla Camurati, conseguiu comunicar-se com o público graças a seu humor maroto, que lançava um olhar escrachado sobre a formação nacional, "Central do Brasil", de Walter Salles, atingiu uma sintonia com o espectador ao tratar do Brasil de hoje. O primeiro alimentou-se da baixa de auto-estima do brasileiro; o segundo, da sua necessidade de ter esperança.

A aritmética simples e implacável do filme
Na verdade, o cinema brasileiro vive hoje um impasse. Os filmes são produzidos, mas não conseguem furar o bloqueio do mercado exibidor.
Por enquanto, o problema está sendo empurrado com a barriga pelo meio cinematográfico, por um motivo simples. Por conta da Lei do Audiovisual, os filmes continuam a ser produzidos, mesmo que ninguém os veja. Com orçamentos inflacionados -não raro ultrapassando os R$ 4 milhões- e bilheterias magras, o cinema brasileiro hoje se configura como uma indústria fictícia, que seria economicamente inviável sem o amparo da renúncia fiscal.
A aritmética é simples e implacável. Da renda de um filme na bilheteria, descontadas as partes do exibidor, do distribuidor, dos impostos e dos gastos de lançamento (cartazes, trailers, publicidade etc.), sobram para o produtor, em geral, meros 20%. Como o preço médio do ingresso é R$ 5, de cada ingresso vendido o produtor recebe R$ 1. Logo, um filme que custou R$ 1 milhão precisa de 1 milhão de espectadores para cobrir seu custo na bilheteria.
Quase todos os países produtores fazem uso de uma legislação de proteção e incentivo, mas contemplando o conjunto da atividade cinematográfica (e não somente a produção), de modo a torná-la economicamente auto-sustentável e socialmente relevante. No Brasil, ainda não chegamos lá.



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