São Paulo, sábado, 16 de maio de 1998

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Sinatra
O mundo perde a voz

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

Não se falava ainda em aldeia global. E, apesar do poder e da glória da música americana, faltava um logotipo que tivesse a força de uma "trade mark", que fosse ao mesmo tempo um fenômeno local e universal reunindo gerações. Havia Bing Crosby, em cuja sombra Frank Sinatra viveu breve e necessário purgatório. A diferença logo se impôs. Bing era um cantor, cantor excepcional. Sinatra era mais: era a voz.
Voz que acompanhou atos e fatos do mundo, que passou pelo teste (desnecessário) do cinema, enfrentou turbulências (também desnecessárias), amou mulheres erradas, andou em más companhias. Apesar da folclórica magreza, tinha gordura suficiente para errar. Pessoalmente, acho até que ele errou pouco.
Pode ser discutido e negado como ser humano. Não importa. O que ficou dele foi a seriedade com que encarou seu ofício de cantor. No início da carreira, quando começava a se tornar o maior nome da música americana, ele encerrou um filme medíocre sobre a vida de Jerome Kern cantando "Old Man River". Volta e meia coloco no vídeo esse final e fico impressionado com a seriedade de sua interpretação, quase operística, ou totalmente operística. Paul Robeson havia dado a régua e o compasso para a canção, Sinatra poderia tirar o time de campo e partir para outro tipo de interpretação -aquela em que ele já era o maior. Preferiu ir além de si mesmo e foi.
Seu repertório é bem mais do que uma sequência de sucessos. Mesmo nos momentos em que, na fase ingrata da carreira, ele apelou para o chamado "lixo", o intérprete pode ter quebrado a cara, mas a voz -sendo incorpórea- superava a contingência e deixava a sua marca: é um Sinatra. Deve-se dizer "é um Sinatra" na mesma entonação com que se diz: "É um Rubens, é um Velázquez, é um Picasso".
Cada um terá de Sinatra uma seleção pessoal e intransferível. Nos três ou quatro minutos de cada momento em que pagou tributo a uma melodia e a uma letra, ele será um cantor de massa -atributo que geralmente diminui o artista.
O furo dele ficou bem acima: cada parcela penetrada por sua voz ganhou a dimensão de um todo. Nos últimos 50 anos, ele deu ao mundo a trilha sonora que ficará como um orgulho de nosso tempo.



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