São Paulo, domingo, 16 de setembro de 2001

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MEMÓRIA

Afeganistão sempre bate invasores

Reuters - 13.set.2001
Garotos na frente de um tanque de guerra pertencente ao Taleban quabrado em estrada na cidade de Sarobi; no passado, afegão levaram a melhor sobre invasores britânicos e soviéticos


Britânicos e russos já sabem o quanto uma aventura militar no país pode ser dolorosa

ROBERT FISK
DO "THE INDEPENDENT"

No alto dos picos que marcam a rota para Cabul, você ainda encontra antigas fivelas de cinturões e bainhas de espadas corroídas. Não é mais possível reconhecer as insígnias dos regimentos britânicos que serviam à antiga Companhia da Índia Oriental, mas os ossos dos 16 mil mortos ainda jazem em algum lugar, em meio à terra escura e à grama baixa que recobre as montanhas do Afeganistão.
Como os britânicos que vieram mais tarde, como os russos que chegariam passado mais de um século, a campanha do general William Elphinstone aconteceu envolta em princípios elevados e terminou de maneira desastrosa.
George W. Bush e Otan, por favor, atenção. De fato, se há um país -chamá-lo de nação seria equívoco- que o Ocidente deveria evitar em termos militares é essa terra tribal em que Osama bin Laden mantém seu santuário.
Pouco mais de duas décadas atrás, eu descobri como se sente um exército invasor em meio àquele altiplano belo, selvagem, inacessível. Detido por um regimento russo de pára-quedistas perto do túnel de Salang, fui enviado de volta a Cabul com um comboio soviético.
Fomos emboscados. Da neve surgiram os afegãos, com facas. Um ataque aéreo e a chegada de tropas tadjiques que serviam no Exército soviético nos salvaram.
Mas o poderoso Exército Vermelho terminou humilhado por homens que não sabiam escrever seus nomes e cujas crenças políticas eram tão exóticas que um combatente capturado mais tarde insistia comigo em que Londres estava ocupada pelos soviéticos.

Flerte
Em 1839, nós britânicos também estávamos preocupados com os russos. O general Elphinstone liderava 16,5 mil soldados -acompanhados por 38 mil não-combatentes-, em nome da Companhia da Índia Oriental.
Eles invadiram o Afeganistão para pôr fim ao flerte entre o emir Dost Mohamed, que governava o país, e o czar da Rússia. Capturaram Kandahar e entraram em Cabul no dia 30 de junho, a primeira força estrangeira a ocupar a cidade nos tempos modernos.
Dost Mohamed -a superpotência britânica daquela era sabia como lidar com nativos recalcitrantes- foi despachado para o exílio, na Índia, mas os afegãos não estavam dispostos a viver sob tutela britânica.
Manter um exército estrangeiro em Cabul era loucura, como Elphinstone deve ter compreendido quando, em 1º de novembro de 1840, um representante britânico, Alexander Burns, foi feito em pedaços por uma multidão no souk (mercado) e teve sua cabeça exibida na ponta de uma estaca.
Uma unidade britânica de 300 soldados que estava em campo teve de fugir de volta para Cabul. E, quando o filho de Mohamed surgiu na liderança de um exército afegão de 30 mil soldados, Elphinstone estava condenado.
Ele fez um acordo com os afegãos e obteve salvo-conduto para voltar ao forte britânico de Jalalabad, perto da fronteira indiana. Era um dos invernos mais frios já registrados. Virtualmente desprovido de comida e confiando em falsas promessas de segurança, ele liderou seu exército em meio à desolação gelada das montanhas que cercam Cabul.

Jóia da coroa
Os não combatentes que acompanhavam o exército foram abandonados. Relatos da época descrevem mulheres indianas, que acompanhavam as unidades coloniais britânicas, sendo despidas, estupradas, privadas de alimentos e assassinadas pelas tribos; seus corpos jaziam na neve.
Elphinstone há muito desistira de proteger os civis. Mas cada nova tentativa de cruzar a garganta de Cabul -eu mesmo veria os restos de um comboio russo espalhados pela mesma trilha quase 140 anos mais tarde- causava novas emboscadas e massacres.
Elphinstone garantiu sua segurança, a de alguns poucos oficiais britânicos e a de um grupo de damas inglesas. Os últimos membros dos regimentos de guardas britânicos foram mortos no alto das colinas, cercados por milhares de afegãos. Lutando até a última bala, o comandante da companhia morreu com a bandeira britânica enrolada na cintura.
Dias mais tarde, o último sobrevivente do massacre, galopando em seu cavalo exausto a caminho de Jalalabad, foi atacado por dois cavaleiros afegãos.
Afastando-os ferozmente, ele quebrou sua espada contra o corpo de um deles. Por fim, com o cavalo que montava quase morto, ele chegou ao forte britânico. Foi a maior derrota sofrida pelo Exército britânico até então.
Os britânicos se apegaram ao Afeganistão como se fosse uma jóia da coroa. Sob o tratado de Gandamak, o emir Yakub Khan foi autorizado a governar Cabul, e uma embaixada britânica seria aberta na cidade. Mas em poucos meses, em 1879, a legação estava sob cerco, e seus poucos ocupantes lutaram até o último homem.
Com a embaixada em chamas, os poucos britânicos que restavam atacaram repetidamente as fileiras dos afegãos. "Quando atacávamos", afirma um relato britânico posterior, "os soldados afegãos corriam como cordeiros diante de um lobo".
Mas em poucas horas os britânicos lutavam no telhado em chamas da embaixada, e terminaram dilacerados por espadas. Seus corpos foram despidos e queimados. O cônsul, filho de pai francês e mãe irlandesa, era o major sir Pierre Louis Napoleon Cavagnari.

Ataque suicida
Um jornalista britânico que acompanhava a Força de Campanha de Cabul encontrou alguns ossos calcinados no jardim da embaixada; entre eles, sem dúvida, os restos de sir Pierre.
Ironicamente, um dos sucessores de Elphinstone estava visitando o local do massacre de 1842, em 1880, quando foi informado de que seu exército fora atacado em uma região remota e semidesértica chamada Maiwand.
Ali, o 30º Batalhão de Infantaria de Bombaim estava combatendo milhares de guerreiros ghazis, os quais atacavam de maneira suicida os canhões britânicos e as tropas coloniais egípcias.
Com avanços selvagens, desfraldando bandeiras islâmicas verdes e completamente despreocupados com a sobrevivência, eles se lançavam contra os britânicos.
Conduziríamos um inquérito sobre os desastres que se seguiram e agora, nas páginas amareladas de um relatório da seção de inteligência do Exército britânico na Índia, encontramos evidências arrepiantes do acontecido.
O capitão Wainwaring relembraria como "todo o terreno à esquerda estava coberto de ghazis e de homens portando bandeiras".
"Os ghazis tinham se infiltrado em meio às linhas dos granadeiros, matando-os a golpes de espada." Uma jovem mulher afegã -que se chamava Malaleh- temia que os aldeões se retirassem, e assim removeu o véu, exibiu-o por sobre a cabeça como bandeira e atacou as linhas dos granadeiros. Foi abatida a tiros.
Mas as tropas do império fugiram. Cerca de 1.320 homens foram perdidos, 21 oficiais, bem como mil rifles e 600 espadas.

O grande jogo
O chamado grande jogo britânico supostamente tratava de fronteiras, mas envolvia manter um Afeganistão sob controle britânico como tampão entre o império na Índia e a fronteira russa. Mas foi uma história de traições.
Grupos que pensávamos nos apoiar se voltavam contra nós. Até 1878, acreditávamos que o emir Sher Ali Khan era aliado, mas ele proibiu a passagem de tropas britânicas e encorajou roubos aos mercadores britânicos.
Sher Ali Khan "abertamente se esforçava... por despertar o ódio religioso contra os ingleses", anunciava nossa declaração de guerra em 21 de novembro de 1878. A assistência e abrigo oferecidos pelo emir aos responsáveis por assassinatos na Embaixada Britânica foram "um crime covarde e traiçoeiro, que lançou indelével desgraça sobre o povo do Afeganistão", anunciou sir Frederic Roberts em 1879, quando os britânicos reocuparam Cabul.
Os seguidores do emir "não devem escapar ao castigo e... a punição a eles infligida deve ser grande o suficiente para que a sintam e dela se lembrem... Todas as pessoas condenadas como participantes [dos assassinatos" receberão o que merecem".

Preâmbulo
Em termos antiquados, vitorianos, a declaração oferece um preâmbulo fantasmagórico para as palavras que temos ouvido do presidente Bush e do primeiro-ministro Blair, nos últimas dias. Os russos passariam por seu calvário de dez anos exatamente um século mais tarde, ainda que tenham sido os afegãos que sofreram virtual genocídio na era da intervenção soviética.
Osama bin Laden, que escapou a diversas tentativas de assassinato de parte de agentes russos, sobreviveu. Talvez Vladimir Putin, que está sendo convidado a aderir à nova campanha ocidental de "democracia e liberdade" contra as forças do mal, devesse lembrar a Bush sobre o quanto a aventura russa no Afeganistão foi dolorosa.
Talvez devamos voltar aos livros de história antes de sugerir, e a idéia de uma aventura como essa vem claramente sendo sugerida em Washington que o grande jogo seja retomado uma vez mais.

Tradução de Paulo Migliacci


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