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Por que ler os clássicos brasileiros
Mais premiado escritor de sua geração, Cristovão Tezza explica por que Machado, Drummond e outros são essenciais para repensar nossas vidas
Divulgação
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O poeta pernambucano Manuel Bandeira |
CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA
M
uito já se disse
para defender
a literatura
brasileira e
tentar quebrar
a resistência que o próprio leitor parece sentir com relação a
ela -pelas listas de best-sellers, percebemos de fato que
há algo de estranho no reino
das nossas letras.
E a defesa sempre parece ganhar um tom patriótico, repercutindo afinal nossa própria
história literária, em que a
questão da famigerada "identidade" tem sido freqüentemente um ponto de honra.
Mas penso que podemos defender a literatura brasileira
sem recorrer a álibis, observando apenas um ponto de partida
-a língua portuguesa do Brasil,
não como uma entidade oficial,
mas como a linguagem que
criou a forma da nossa visão de
mundo, em toda a sua imensa
variedade.
Do histórico pessoal e social
da língua, não podemos nos livrar por escolha; a língua dirige
nosso olhar, escolhe objetos e
referências, estabelece relações, cria entonações, se multiplica em subentendidos e muitas vezes fala por nós.
E, dentre todas as formas da
língua, do padrão escolar aos
mil dialetos populares da oralidade cotidiana, a literatura
consolida um padrão de civilização, a passagem entre a liberdade da fala e a dureza da escrita; e, mais que isso, é o grande
elo de ligação entre o indivíduo
-esse desejo solitário de dizer,
que é a alma da literatura- e a
sociedade, a quem respondemos com nossa palavra.
Essa relação poderosa entre
a nossa língua e o olhar que ela
encerra, em estado de liberdade, pode ser encontrada na literatura brasileira com grande
nitidez. Mais que isso, ela é a
ponte que afinal pode nos tornar cidadãos do mundo. É um
bom motivo para conhecê-la.
Dos 20 livros da "Coleção
Folha Grandes Escritores Brasileiros", começo por lembrar a
importância em minha formação pessoal dos poemas de Carlos Drummond de Andrade,
versos que ressoam até hoje como formas insubstituíveis de
reconhecimento do mundo, na
minha língua.
Lugar das diferenças
A percepção da realidade pela voz de seus poemas criou um
sistema de referências que nenhuma outra forma da linguagem -todas utilitárias, a serviço de algum objetivo imediato- seria capaz de dar.
Em seguida, a leitura da prosa de Graciliano Ramos me
abriu outro universo. A sua frase curta e seca, falando de um
mundo a um tempo terrível e
próximo, avançava como que
desmontando as coisas que eu
via pelos olhos dele.
Quase ao mesmo tempo, entrei nos textos de Machado de
Assis para descobrir também
naquela linguagem o que de fato me interessava na literatura,
o ponto de confluência mental
entre língua, indivíduo e sociedade, em que as formas da nossa sensibilidade são postas à
prova página a página.
Um bom texto literário não é
apenas um sistema de referências descritivas, abstrato e redutível a um código -é uma voz
pessoal que tem algo urgente a
nos dizer, usando a nossa palavra.
Com Drummond, Graciliano
e Machado, aprendi fundamentalmente um modo de olhar o
mundo, de perceber suas relações e sentir seus valores; eles
sugeriam sutilmente quem eu
era e onde eu estava. E com eles
descobri e consolidei minha
linguagem pessoal.
Mas, é claro, como a literatura é o território das diferenças,
ela revela milhares de modos
de ver -cada bom escritor tem
sua marca inconfundível, apresenta um repertório novo de
referências e nos propõe um
ângulo do olhar.
No caso da literatura brasileira, com um detalhe fundamental: usando substancialmente as palavras, entonações,
sentidos e frases que deram
forma à nossa cabeça, desde a
aquisição da linguagem (considerando, também, a passagem
nem sempre tranqüila ao mundo da escrita).
Exótico, épico e sensual
Para escolher, graduar e até
mesmo negar, é preciso conhecer. A literatura brasileira nos
dá muitas chaves para pensar
nosso espaço e nossa vida.
Com autores como Jorge
Amado e Erico Verissimo,
grandes narradores do Brasil
do século 20, entramos em contato com concepções de mundo, de linguagem e de país cuja
influência continua ressoando
no nosso imaginário. O Brasil
exótico e sensual e o Brasil épico se entrelaçam nesses autores e continuam a nos colocar
questões importantes hoje,
quando nosso perfil rural já não
é o mesmo de 50 anos atrás.
E um autor como Guimarães
Rosa acrescenta elementos
mágicos e místicos, dando à sabedoria popular uma inesperada transcendência, pela força
transfiguradora da linguagem.
O apelo regional tem sido,
aliás, fonte permanente de nossa narrativa -"Memorial de
Maria Moura", de Rachel de
Queiroz, que integra a coleção,
é um belo exemplo. Em outra
chave, o clássico "Macunaíma",
de Mario de Andrade, o herói
sem nenhum caráter, continua
a nos desafiar com a sua proposta poética de uma identidade brasileira.
O charme do exotismo, um
eterno canto de sereia, às vezes
encontra seus inimigos ferozes
pela voz da sátira. Autores tão
díspares como Lima Barreto (e
seu maravilhoso "Triste Fim de
Policarpo Quaresma") e Oswald de Andrade (com o demolidor "O Rei da Vela") batem
frontalmente na ilusão do nosso berço esplêndido.
A voz da imagem do povo encontra ressonância no teatro de
Ariano Suassuna ("Auto da
Compadecida") e na poesia
dramática de João Cabral de
Melo Neto -em "Morte e Vida
Severina", a dura lapidação formal do grande poeta encontra-se com o apelo popular.
Ainda no teatro, o clássico
"Vestido de Noiva" inaugura
outra desmontagem radical do
homem brasileiro: mais que
ninguém, Nelson Rodrigues
entendeu que não somos santos. O lirismo, representado na
coleção em versos e crônicas,
estabelece um parentesco sutil
que começa com o pernambucano Manuel Bandeira, passa
pelo carioca Vinicius de Moraes e vai até o gaúcho Mario
Quintana; o "Romanceiro da
Inconfidência", de Cecília Meireles, recria com traços épicos
emblemas da nossa história.
E o "Poema Sujo", de Ferreira Gullar, é uma síntese contemporânea de nossas múltiplas vertentes poéticas.
Finalmente, dos prosadores
urbanos mais recentes, dois
momentos políticos fundamentais da nossa história estão
representados na "Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros" -"Agosto", de Rubem
Fonseca, tematizando o suicídio de Vargas, e "Reflexos do
Baile", de Antonio Callado, retomando as complexas ramificações do golpe de 1964.
CRISTOVÃO TEZZA (1952) é escritor, autor de
"O Filho Eterno" (Record). Recebeu, entre outros, os prêmios Machado de Assis, da Biblioteca Nacional (pelo livro "Breve Espaço entre Cor e
Sombra"), Academia Brasileira de Letras (por
"O Fotógrafo") e Petrobras (por "Aventuras
Possíveis").
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