São Paulo, Quinta-feira, 18 de Março de 1999
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País produz filmes que alternam aproximação e afastamento com o sucesso popular
Breve história do cinema brasileiro

Reprodução
Em 1939, com 'Serenata Tropical", Carmen Miranda é lançada em Hollywood


AMIR LABAKI
da Equipe de Articulistas

"O cinema brasileiro tem mais marcos que o Banco Central alemão."
Barão de Itararé

O cinema brasileiro tem tradição, sim senhor. O Brasil descobriu o filme apenas sete meses após a primeira exibição pública do cinematográfo Lumière em Paris e, dada a característica dupla das câmeras de então (registro e projeção), não é improvável que as primeiras filmagens tenham precedido em muito a estréia convencional (junho de 1898) atribuída ao imigrante italiano Affonso Segretto.
Nestes mais de cem anos de cinema nacional, a tradição tem sido de longas crises e esporádicas bonanças. Todos os projetos de organização industrial da produção, aos moldes hollywoodianos, cedo ou tarde fracassaram, mas apenas em dois períodos curtos períodos a linha produtiva foi radicalmente interrompida. Entre 1911 e 1917, a primeira crise local é agravada com a escassez de película sensível causado pelas restrições à importação advindas com a Primeira Guerra Mundial. Pôr sua vez, no início dos anos 90, o colapso da produção é consequência da supressão pelo governo Fernando Collor dos mecanismos estatais de apoio ao filme nacional.
Os registros documentais dominam a primeira década de produção. A era muda conhece sua "belle époque" entre 1908 e 1911, a partir do suporte do primeiro ciclo de filmes ficcionais pôr um vigoroso sistema de distribuição e exibição.
Da lenta recuperação da primeira grande crise até o fim da era muda o centro de produção transferiu-se para São Paulo, tendo por expoentes cineastas como Gilberto Rossi e José Medina. O período é ainda marcado pela eclosão de importantes ciclos regionais de Amazonas a Minas Gerais, de Pernambuco ao Rio Grande do Sul.
Coube à pequena Cataguases mineira, vinculada a decadente economia do café, a revelação em fins dos anos 20 do primeiro grande cineasta brasileiro: Humberto Mauro, admirador dos melodramas de Griffith. O cinema mudo já era passado no mundo quando a produção experimental brasileria conhecia duas explosões de criatividade: "São Paulo, Sinfonia de uma Metrópole" (1928), de Adalberto Kemeny e Rodolfo Lustig, e Limite" (1930), rodado por um jovem de dezoito anos, Mário Peixoto.
Com o advento do cinema sonoro inicia-se o longo ciclo de comédias musicais populares os filmes carnavalescos logo batizados de "chanchadas". Os estúdios Cinédia de Adhemar Gonzaga cumpriram papel pioneiro, mas o gênero alcançou sua maturidade a partir do fim dos anos 40 já sob a hegemonia da Atlântida.
A fórmula de tramas singelas, não raras vezes paródicas de sucessos americanos, e humor "clownesco", protagonizado pôr atores de gênio como Oscarito e Grande Otelo, reconquistou o público e estabeleceu-se para além do ciclo das chanchadas, sedimentando posteriormente o sucesso de Amácio Mazzaropi (décadas de 50 a 70) e de Renato Aragão (de 70 até hoje).
Buscando uma produção "artística" com bases industriais, em reação ao caráter pretensamente popularesco das chanchadas, a Companhia Vera Cruz surgiu na São Paulo da virada dos anos 40-50. Estruturada aos moldes da Cinecittà italiana, apostou em temas nacionais filmados a partir de sólidos valores de produção. A negligência quanto ao estabelecimento de um sólido circuito de distribuição e exibição não tardou em inviabilizar o sonho de um estúdio brasileiro de padrão internacional.
A falência da Vera Cruz estigmatizou o projeto de uma indústria de cinema baseada num sistema de estúdios no Brasil. Contudo, num destes paradoxos que escrevem a história, vinculam-se a ela os dois primeiros títulos a despertar atenção no exterior para o filme nacional. "O Cangaceiro"(1953), uma das produções do estúdio, correu mundo depois de duplamente premiado em Cannes.
Pôr sua vez, deve-se a um de seus ex-astros, o ator tornado diretor Anselmo Duarte, o maior triunfo da história do cinema brasileiro, com a conquista da Palma de Ouro em Cannes-62 pôr "O Pagador de Promessas".
Sob a influência do despojado neo-realismo italiano, um novo modelo, pautado pela crença na produção independente de filmes de orçamentos modestos, dominou a década de 50. Os símbolos maiores são "Rio, 40 Graus" (1955) de Nélson Pereira dos Santos e "O Grande Momento" (1958) de Roberto Santos.
A difusão deste esquema mais leve e barato de produção estimulou o desenvolvimento de novos ciclos regionais, sobretudo no Nordeste. Glauber Rocha surgiu então como um dos jovens estreantes na Bahia. Sua ida ao Rio catalisou a reunião, já em plenos anos 60, daquele que se tornou o núcleo central do movimento batizado de "Cinema Novo": Luiz Carlos Barreto, Nélson Pereira dos Santos, Arnaldo Jabor, Carlos Diegues, David Neves, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, e Ruy Guerra, entre outros.
"Uma câmera na mão, uma idéia na cabeça": filmagens ao ar livre (neo-realismo), com equipamentos leves ("Nouvelle Vague"), histórias e personagens brasileiros. Em 1963 e 1964, ficavam prontos os títulos da insuperada "trilogia do sertão" -"Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha, "Os Fuzis", de Ruy Guerra, "Vidas Secas", de Nélson Pereira dos Santos. A miséria, a fome, a opressão e a religiosidade do Nordeste brasileiro chegavam às telas com inédita contundência.
A ditadura militar estabelecida em 1964 golpeou o movimento em plena ascensão. O enfoque social tornou-se político e as câmeras trocavam o interior pelas metrópoles (Terra em Transe, A Grande Cidade). Essa guinada para um cinema urbano coincidiu com o amadurecimento em São Paulo do movimento de produção independente, caracterizado por filmes intimistas como "Noite Vazia" (1964), de Walter Hugo Khoury, e "São Paulo S.A" (1965), de Luiz Sérgio Person.
Visando driblar as crescentes limitações para a livre expressão, o Cinema Novo enveredava no final da década para uma última fase marcadamente alegórica (Brasil Ano 2000, Azyllo Muito Louco, Pindorama). Simultaneamente, a produção experimental revigorava-se com o diálogo bem-humorado com a indústria cultural estabelecido pelo "Cinema Marginal" (O Bandido da Luz Vermelha, O Anjo Nasceu, Bang Bang), numa trilha aberta pelo ultra-alternativo José Mojica Marins (o Zé do Caixão).
A década de 70 notabilizou-se pela mais agressiva atuação estatal direta em defesa do filme brasileiro. A progressiva ampliação da reserva de mercado e o incremento das atividades de fomento através da Embrafilme representaram as principais iniciativas capitaneadas pelo regime militar em nome do nacionalismo.
O cinema brasileiro atravessou mais de uma década de produtividade e popularidade intensas como nunca desde a "belle epoque". O campeão de bilheterias, "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (1976) de Bruno Barreto, foi visto por mais de dez milhões de espectadores. Liderado pôr Renato Aragão, o quarteto cômico Trapalhões conquistava nada menos que treze das vinte maiores bilheterias do período. A eufórica era Embrafilme deve ainda parte de seu sucesso, lembre-se, ao fenômeno das "pornochanchadas", comédias eróticas de baixo orçamento.
Ainda em seu ocaso, o regime autoritário teve sua herança discutida, no início dos anos 80, pôr filmes como "Pixote, A Lei do Mais Fraco", de Hector Babenco, e "Cabra Marcado pra Morrer", documentário de Eduardo Coutinho.
Uma nova geração de realizadores cinéfilos (André Klotzel, Djalma Limongi, Guilherme de Almeida Prado) lançou em meados da década "o Novo Cinema Paulista", um movimento que não tempo para amadurecer.
Os anos 80 encerraram-se com a falência do modelo Embrafilme, provocada tanto pôr uma crise de legitimidade ligada a denúncias de favorecimentos quanto pelo agravamento da situação financeira nacional. Em março de 1990, Collor extinguia a empresa e o mercado passava a ser o supremo guardião da cultura. O colapso da produção foi absoluto. Menos de cinco longas foram produzidos nos três anos seguintes. O cinema brasileiro sobreviveu apenas graças a safras criativas de curtas-metragens.
Uma lenta retomada esboçou-se desde a adoção em meados desta década de uma nova legislação de incentivos fiscais (a Lei do Audiovisual). O reencontro com o público teve pôr primeiro novo marco o milhão de espectadores, em 1995, da escrachada comédia "Carlota Joaquina, Imperatriz do Brasil", de Carla Camurati.
Sem menosprezar o impacto das indicações ao Oscar de filme estrangeiro para "O Quatrilho" (1995), de Fábio Barreto, e "O Que É Isso, Companheiro" (1997), de Bruno Barreto, o mais importante título deste novo ciclo é "Central do Brasil" (1998), de Walter Salles, um "road movie" melancólico sobre o reencontro da ética no alquebrado Brasil deste fim de século.
Trinta e três prêmios lá fora, quase dois milhões de espectadores aqui dentro e, em ambos casos, ainda contando, as duas indicações ao Oscar incluídas. Junto com o mundo, também o Brasil redescobre assim seu cinema e Salles firma-se como um pioneiro não menos fundamental que os primeiros operadores Lumière aqui desembarcados. Um Oscar até pode vir, mas teria base de barro, pois nova crise geral agiganta-se no horizonte próximo. Nada que surpreenda. Assim dita a tradição.


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