São Paulo, sábado, 18 de junho de 2005

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ROCINANTE

Uma entrevista exclusiva com o famoso cavalo de Quixote, feita no Jockey Club do Rio de Janeiro

Presente, mas invisível

AUTRAN DOURADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sou um leitor assíduo dos livros espanhóis do século 17 que tratam de pícaros e cavaleiros andantes e dos mestres da narrativa em forma barroca, como Quevedo, Mateo Alemán e Miguel de Cervantes Saavedra. Este último é relativamente bem conhecido no Brasil, pelo menos seu nome e o de alguns de seus personagens já entraram para a língua geral. De Quevedo provavelmente poucos ouviram falar, mas pelo menos nos círculos universitários deve ser conhecido. Já de Mateo Alemán nunca ouvi ninguém falar.
A idéia deste suplemento, comemorativo do quarto centenário de "D. Quixote de la Mancha", de Cervantes, de fazer cada um dos personagens do livro ser retratado por um escritor brasileiro me pareceu muito boa e engenhosa; até ficar eu sabendo que deveria escrever sobre Rocinante, o cavalo de Dom Quixote.
Não era preconceito meu contra os animais ou histórias deles (já fiz na vida alguns papéis não muito canônicos), mas é pelo pouco conhecimento ou experiência que eu tenho de cavalo. Apesar de achar o cavalo o mais belo dos animais, não tive até hoje nenhuma convivência com ele. Mas, oh, como eu gostaria agora de me encontrar com o Rocinante, o cavalo de Dom Quixote!
Quando recebi por telefone o convite do jornalista de São Paulo, eu lia, por coincidência, o "Quixote", na magnífica edição de Rodriguez Marín. Naquele telefonema, Quixote me disse que estaria à minha espera no Jóquei Clube, às três da tarde do dia seguinte. Fiquei realmente impressionado. Era de noite, mal conseguia dormir, achei que delirava, cheguei a me sentir febril. Ele estaria com um cravo na lapela, disse a voz.
No dia seguinte, lá estava eu, à hora marcada, no Jóquei Clube. Estranho, não havia ninguém com uma flor na lapela, a não ser um cavalo com um cravo entre os dentes. Me aproximei do animal, que me disse ser o Rocinante, e que em São Paulo aguardavam com o maior interesse a entrevista, pois era a primeira vez que um cavalo, em vez de correr, fala.
Eu me conformei com a idéia de falar com um jornalista na sua forma eqüina, pedi-lhe apenas que falasse mais baixo, para que não desconfiassem. Meu coração batia de emoção, era a primeira vez que eu ia entrevistar alguém que era Dom Quixote, se bem que na sua forma de Rocinante. Dom Quixote era, meu Deus, o melhor narrador da minha vida.
Você está em falta comigo, disse eu. Por que ficou de vir em forma de Dom Quixote e me vem na pele do Rocinante? Não pude, ele está muito ocupado recebendo o governador do Estado, que quer trocar impressões sobre a arte de governar e pedir conselhos. Não se esqueça do mote que ele vive dizendo, quem sabe pensando em outro autor, outro tempo, na cronologia própria dos romancistas, seja no Rio, na Mancha, em Minas: "Tudo é símbolo e todo símbolo é mensagem". Fica sendo esta a primeira resposta à sua informulada pergunta.
Venha a segunda pergunta, disse ele, de três, que tenho pressa. Um tanto frustrado, eu disse, quase insistindo, qual é a sua função, Rocinante, no conjunto da narrativa, já que não se trata de um romance naturalista. Naturalista ou realista de jeito nenhum, disse ele. "Dom Quixote" é um livro muito bem arquitetado e bem articulado, embora à primeira vista possa parecer não ter estrutura, disse eu me intrometendo e sendo ignorado. A minha função é costurar como um todo as várias partes do risco do bordado. Presente mas invisível, como Deus na criação, feito diz Flaubert.
Agora, a última pergunta, já sem esperar resposta. Quando, no romance, Dom Quixote e o barbeiro brigam pela posse da bacia, dizendo o barbeiro que era bacia, e Dom Quixote, o elmo de Mambrino, há uma solução bem à Sancho Pança -nem uma coisa nem outra, mas bacielmo, contentando ambas as partes. Em silêncio você estava, em silêncio ficou, asno, e assim, no seu silêncio, desapareceram nas nuvens do tempo os dois contendores. Afinal e de uma vez por todas, o que faz você ali, e em todo o romance. Em silêncio? Amigo romancista, ali eu era Rocinante -e minha vontade; homenagem ao delírio dos reais escritores, eu e você. Naquele mesmo episódio que você leu sem me ver -leu mal- respondo à sua primeira pergunta, assim a todas: "...y cortada, pues, la cólera y aun la melancolia, subieron a caballo, y sin tomar determinado camino (por ser muy de caballeros andantes el no tomar ninguno cierto) se pusieron a caminar por donde la voluntad de Rocinante quiso, que se llevaba trás si la de su amo, y aun la del asno, que siempre le seguia por dondequiera que guiaba, em buen amor y compañía". E é no secreto das escritas que lhe revelo o que sou fui, caro Autran, na narrativa além do fio que costura as várias partes do risco do nosso bordado.
Sou Rocinante. Don Miguel de Saavedra.
E desaparecemos todos nas nuvens do tempo. Contendores.


Autran Dourado é escritor, vencedor do Prêmio Camões de 2000 e autor de "Uma Vida em Segredo" e "Ópera dos Mortos", entre outros.


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