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ROCINANTE
Uma entrevista exclusiva com o famoso cavalo de Quixote, feita no Jockey Club do Rio de Janeiro
Presente, mas invisível
AUTRAN DOURADO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Sou um leitor assíduo dos livros
espanhóis do século 17 que tratam
de pícaros e cavaleiros andantes e
dos mestres da narrativa em forma barroca, como Quevedo, Mateo Alemán e Miguel de Cervantes
Saavedra. Este último é relativamente bem conhecido no Brasil,
pelo menos seu nome e o de alguns de seus personagens já entraram para a língua geral. De
Quevedo provavelmente poucos
ouviram falar, mas pelo menos
nos círculos universitários deve
ser conhecido. Já de Mateo Alemán nunca ouvi ninguém falar.
A idéia deste suplemento, comemorativo do quarto centenário de "D. Quixote de la Mancha",
de Cervantes, de fazer cada um
dos personagens do livro ser retratado por um escritor brasileiro
me pareceu muito boa e engenhosa; até ficar eu sabendo que deveria escrever sobre Rocinante, o cavalo de Dom Quixote.
Não era preconceito meu contra
os animais ou histórias deles (já
fiz na vida alguns papéis não muito canônicos), mas é pelo pouco
conhecimento ou experiência que
eu tenho de cavalo. Apesar de
achar o cavalo o mais belo dos
animais, não tive até hoje nenhuma convivência com ele. Mas, oh,
como eu gostaria agora de me encontrar com o Rocinante, o cavalo
de Dom Quixote!
Quando recebi por telefone o
convite do jornalista de São Paulo,
eu lia, por coincidência, o "Quixote", na magnífica edição de Rodriguez Marín. Naquele telefonema,
Quixote me disse que estaria à minha espera no Jóquei Clube, às
três da tarde do dia seguinte. Fiquei realmente impressionado.
Era de noite, mal conseguia dormir, achei que delirava, cheguei a
me sentir febril. Ele estaria com
um cravo na lapela, disse a voz.
No dia seguinte, lá estava eu, à
hora marcada, no Jóquei Clube.
Estranho, não havia ninguém
com uma flor na lapela, a não ser
um cavalo com um cravo entre os
dentes. Me aproximei do animal,
que me disse ser o Rocinante, e
que em São Paulo aguardavam
com o maior interesse a entrevista, pois era a primeira vez que um
cavalo, em vez de correr, fala.
Eu me conformei com a idéia de
falar com um jornalista na sua
forma eqüina, pedi-lhe apenas
que falasse mais baixo, para que
não desconfiassem. Meu coração
batia de emoção, era a primeira
vez que eu ia entrevistar alguém
que era Dom Quixote, se bem que
na sua forma de Rocinante. Dom
Quixote era, meu Deus, o melhor
narrador da minha vida.
Você está em falta comigo, disse
eu. Por que ficou de vir em forma
de Dom Quixote e me vem na pele
do Rocinante? Não pude, ele está
muito ocupado recebendo o governador do Estado, que quer trocar impressões sobre a arte de governar e pedir conselhos. Não se
esqueça do mote que ele vive dizendo, quem sabe pensando em
outro autor, outro tempo, na cronologia própria dos romancistas,
seja no Rio, na Mancha, em Minas: "Tudo é símbolo e todo símbolo é mensagem". Fica sendo esta a primeira resposta à sua informulada pergunta.
Venha a segunda pergunta, disse ele, de três, que tenho pressa.
Um tanto frustrado, eu disse, quase insistindo, qual é a sua função,
Rocinante, no conjunto da narrativa, já que não se trata de um romance naturalista. Naturalista ou
realista de jeito nenhum, disse ele.
"Dom Quixote" é um livro muito
bem arquitetado e bem articulado, embora à primeira vista possa
parecer não ter estrutura, disse eu
me intrometendo e sendo ignorado. A minha função é costurar como um todo as várias partes do
risco do bordado. Presente mas
invisível, como Deus na criação,
feito diz Flaubert.
Agora, a última pergunta, já
sem esperar resposta. Quando, no
romance, Dom Quixote e o barbeiro brigam pela posse da bacia,
dizendo o barbeiro que era bacia,
e Dom Quixote, o elmo de Mambrino, há uma solução bem à Sancho Pança -nem uma coisa nem
outra, mas bacielmo, contentando ambas as partes. Em silêncio
você estava, em silêncio ficou, asno, e assim, no seu silêncio, desapareceram nas nuvens do tempo
os dois contendores. Afinal e de
uma vez por todas, o que faz você
ali, e em todo o romance. Em silêncio? Amigo romancista, ali eu
era Rocinante -e minha vontade; homenagem ao delírio dos
reais escritores, eu e você. Naquele mesmo episódio que você leu
sem me ver -leu mal- respondo à sua primeira pergunta, assim
a todas: "...y cortada, pues, la cólera y aun la melancolia, subieron a
caballo, y sin tomar determinado
camino (por ser muy de caballeros andantes el no tomar ninguno
cierto) se pusieron a caminar por
donde la voluntad de Rocinante
quiso, que se llevaba trás si la de su
amo, y aun la del asno, que siempre le seguia por dondequiera que
guiaba, em buen amor y compañía". E é no secreto das escritas
que lhe revelo o que sou fui, caro
Autran, na narrativa além do fio
que costura as várias partes do risco do nosso bordado.
Sou Rocinante. Don Miguel de
Saavedra.
E desaparecemos todos nas nuvens do tempo. Contendores.
Autran Dourado é escritor, vencedor
do Prêmio Camões de 2000 e autor de
"Uma Vida em Segredo" e "Ópera dos
Mortos", entre outros.
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