São Paulo, sábado, 18 de junho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

D. QUIXOTE CRUZA O ATLÂNTICO

Um escritor mexicano e outro argentino analisam a influência de Cervantes na América Latina

"Machado foi um rebelde quixotesco"

DA REDAÇÃO

Para quem acha que "Dom Quixote" é um livro importante só para o mundo hispânico, o mexicano Carlos Fuentes tem uma revelação. O brasileiro Machado de Assis é o herdeiro latino-americano mais fiel da obra de Cervantes.
Em entrevista à Folha, o autor de "A Morte de Artemio Cruz", "Aura" e "Gringo Velho" explica por que seu ensaio "Machado de la Mancha" continua atual. (SYLVIA COLOMBO)
 

Folha - No ensaio "Machado de la Mancha", o sr. comparou Cervantes a Machado de Assis. Ainda crê que essa análise siga atual?
Carlos Fuentes -
Sim. Cervantes tem, no século 18, dois seguidores, Laurence Sterne (1713-1768), com "Tristam Shandy", e Denis Diderot (1713-1784), com "Jacques, o Fatalista". Depois, triunfa o que chamo de romance de Waterloo. Napoleão e o herói napoleônico são o centro do romance realista do século 19.
Mas a herança de Cervantes, a do livro que se sabe livro e do livro que se funda na imaginação literária, só tem um expoente no século 19, na América Latina, que se chama Machado de Assis.
É uma coisa extraordinária, pois o resto do continente se empenhou primeiro na novela romântica primeiro, depois na novela realista e na novela naturalista. O único que quebra esse ciclo e aparece como rebelde quixotesco é Machado de Assis.

Folha - A idéia de que Cervantes inaugurou o romance moderno foi criada pelo romantismo. O sr. acredita que ainda se possa fazer tal leitura?
Fuentes -
Esse é um conceito mais importante do que nunca porque Cervantes rompeu os moldes do gênero. Colocou para dialogar o picaresco, que é Sancho Pança, com a épica cavalheiresca, que é Dom Quixote. Estabeleceu um diálogo de gêneros e introduziu o poema de amor, a novela italiana, bizantina, pastoral, a paródia e as notícias.
Todos os gêneros imagináveis estão nesse livro. "Dom Quixote" faz do romance um gênero de gêneros.
O que estamos fazendo é voltar a Cervantes. Guenter Grass, Milan Kundera, Garcia Márquez e eu mesmo seguimos o grande modelo cervantino, não respeitando normas de pureza num gênero tão impuro como o romance.

Folha - Mas como é a leitura do Quixote no século 21? No que difere da leitura do século 16 ou 19?
Fuentes -
As leituras mudam. Uma coisa é o que pensa um leitor na Espanha da Contra-reforma, e outra é o leitor de hoje, que vive sob outras ameaças. A ameaça do triunfo do visual, por exemplo. O etéreo triunfo das imagens sobre a palavra. Um momento em que se pode abrir mão da palavra, que é perigosa, em nome da imagem, que pode ser inócua. Esse é um enorme perigo do mundo de hoje, e como Cervantes e o Quixote não regressam à palavra como base da realidade, é um livro de uma atualidade assombrosa.

Folha - A leitura é um protagonista do livro?
Fuentes -
O Quixote é um livro dentro de um livro. Cervantes cria uma série de referências com relação à literatura. Apresenta a novela como uma possibilidade de falar de literatura dentro da literatura. O mais exemplar nesse sentido é o fato de que o Quixote é o primeiro personagem de uma obra de ficção que se sabe escrito e lido.
Na segunda parte da obra, ele entra em uma prensa de Barcelona e pergunta o que está sendo impresso naquele momento. E o que está sendo impresso... é o próprio livro. Nesse momento há uma reviravolta da realidade literária, pois o personagem se sabe lido e quem passa a ocupar o lugar central é o leitor.
Dom Quixote era leitor, virou protagonista de um livro, descobriu ser lido e deposita o romance nas mãos do leitor. Eu e você, que não estávamos em 1605, mas que estamos hoje, lendo essa obra para que façamos algo mais do que Cervantes, pois somos o leitor que conhece o futuro.

Folha - O sr. acha possível comparar Cervantes com o Quixote?
Fuentes -
"Dom Quixote" é um romance misterioso. O personagem tem muitos aspectos e é muito contraditório, pois parece um louco, mas muitas vezes resulta ser muito racional. Ele pode se sentar e falar da Idade de Ouro, mas de repente confunde uma venda com um castelo. Só que, depois, começa a falar das armas e das letras como se fosse um filósofo. É um personagem bastante complexo.
Ele intervém na vida sentimental dos outros personagens com extrema lucidez, ainda que, às vezes, os confunda com magos e princesas. Estão aí as idas e vindas entre a realidade e a fantasia para nos dizer que há uma realidade concreta, mas também há uma realidade da imaginação. Essa é a grande mensagem de Cervantes.

Folha - Para o sr., qual é a passagem mais marcante do romance?
Fuentes -
É a batalha com os moinhos de vento. Porque aí se estabelece a ambigüidade da obra. Não podemos saber com certeza o que passa. E não estamos vendo um filme, mas sim lendo palavras, o que deveria ser uma descrição. E ainda assim nunca poderemos saber se os moinhos são gigantes ou se os gigantes são moinhos.


Texto Anterior: Com Dom Quixote, morre sonho espanhol
Próximo Texto: Frase
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.