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D. QUIXOTE CRUZA O ATLÂNTICO
Um escritor mexicano e outro argentino analisam a influência de Cervantes na América Latina
"Machado foi um rebelde quixotesco"
DA REDAÇÃO
Para quem acha que "Dom
Quixote" é um livro importante
só para o mundo hispânico, o
mexicano Carlos Fuentes tem
uma revelação. O brasileiro Machado de Assis é o herdeiro latino-americano mais fiel da obra
de Cervantes.
Em entrevista à Folha, o autor
de "A Morte de Artemio Cruz",
"Aura" e "Gringo Velho" explica por que seu ensaio "Machado
de la Mancha" continua atual.
(SYLVIA COLOMBO)
Folha - No ensaio "Machado de
la Mancha", o sr. comparou Cervantes a Machado de Assis. Ainda
crê que essa análise siga atual?
Carlos Fuentes - Sim. Cervantes
tem, no século 18, dois seguidores, Laurence Sterne (1713-1768), com "Tristam Shandy", e
Denis Diderot (1713-1784), com
"Jacques, o Fatalista". Depois,
triunfa o que chamo de romance
de Waterloo. Napoleão e o herói
napoleônico são o centro do romance realista do século 19.
Mas a herança de Cervantes, a
do livro que se sabe livro e do livro que se funda na imaginação
literária, só tem um expoente no
século 19, na América Latina,
que se chama Machado de Assis.
É uma coisa extraordinária,
pois o resto do continente se
empenhou primeiro na novela
romântica primeiro, depois na
novela realista e na novela naturalista. O único que quebra esse
ciclo e aparece como rebelde
quixotesco é Machado de Assis.
Folha - A idéia de que Cervantes
inaugurou o romance moderno
foi criada pelo romantismo. O sr.
acredita que ainda se possa fazer
tal leitura?
Fuentes - Esse é um conceito
mais importante do que nunca
porque Cervantes rompeu os
moldes do gênero. Colocou para
dialogar o picaresco, que é Sancho Pança, com a épica cavalheiresca, que é Dom Quixote. Estabeleceu um diálogo de gêneros e
introduziu o poema de amor, a
novela italiana, bizantina, pastoral, a paródia e as notícias.
Todos os gêneros imagináveis
estão nesse livro. "Dom Quixote" faz do romance um gênero
de gêneros.
O que estamos fazendo é voltar a Cervantes. Guenter Grass,
Milan Kundera, Garcia Márquez e eu mesmo seguimos o
grande modelo cervantino, não
respeitando normas de pureza
num gênero tão impuro como o
romance.
Folha - Mas como é a leitura do
Quixote no século 21? No que difere da leitura do século 16 ou 19?
Fuentes - As leituras mudam.
Uma coisa é o que pensa um leitor na Espanha da Contra-reforma, e outra é o leitor de hoje, que
vive sob outras ameaças. A
ameaça do triunfo do visual, por
exemplo. O etéreo triunfo das
imagens sobre a palavra. Um
momento em que se pode abrir
mão da palavra, que é perigosa,
em nome da imagem, que pode
ser inócua. Esse é um enorme
perigo do mundo de hoje, e como Cervantes e o Quixote não
regressam à palavra como base
da realidade, é um livro de uma
atualidade assombrosa.
Folha - A leitura é um protagonista do livro?
Fuentes - O Quixote é um livro
dentro de um livro. Cervantes
cria uma série de referências
com relação à literatura. Apresenta a novela como uma possibilidade de falar de literatura
dentro da literatura. O mais
exemplar nesse sentido é o fato
de que o Quixote é o primeiro
personagem de uma obra de ficção que se sabe escrito e lido.
Na segunda parte da obra, ele
entra em uma prensa de Barcelona e pergunta o que está sendo
impresso naquele momento. E o
que está sendo impresso... é o
próprio livro. Nesse momento
há uma reviravolta da realidade
literária, pois o personagem se
sabe lido e quem passa a ocupar
o lugar central é o leitor.
Dom Quixote era leitor, virou
protagonista de um livro, descobriu ser lido e deposita o romance nas
mãos do leitor. Eu e
você, que não estávamos em 1605,
mas que estamos
hoje, lendo essa
obra para que façamos algo mais do
que Cervantes, pois
somos o leitor que
conhece o futuro.
Folha - O sr. acha
possível comparar
Cervantes com o
Quixote?
Fuentes - "Dom
Quixote" é um romance misterioso.
O personagem tem
muitos aspectos e é
muito contraditório, pois parece um
louco, mas muitas
vezes resulta ser
muito racional. Ele
pode se sentar e falar da Idade de Ouro, mas de repente
confunde uma venda com um castelo.
Só que, depois, começa a falar das armas e das letras como se fosse um filósofo. É um personagem bastante
complexo.
Ele intervém na vida sentimental dos outros personagens
com extrema lucidez, ainda que,
às vezes, os confunda com magos e princesas. Estão aí as idas e
vindas entre a realidade e a fantasia para nos dizer que há uma
realidade concreta, mas também há uma realidade da imaginação. Essa é a grande mensagem de Cervantes.
Folha - Para o sr., qual é a passagem mais marcante do romance?
Fuentes - É a batalha com os
moinhos de vento. Porque aí se
estabelece a ambigüidade da
obra. Não podemos saber com
certeza o que passa. E não estamos vendo um filme, mas sim
lendo palavras, o que deveria ser
uma descrição. E ainda assim
nunca poderemos saber se os
moinhos são gigantes ou se os
gigantes são moinhos.
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