São Paulo, quinta-feira, 19 de dezembro de 2002

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MST

Estratégia de impedir desapropriações de terras invadidas reduziu o número de invasões de 390 em 2000 para 194 em 2001; propaganda oficial inflou dados da reforma agrária com terrenos vazios e assentados já mortos

No campo, governo enfrentou o radicalismo dos sem-terra

JOSÉ MASCHIO e EDUARDO SCOLESE
DA AGÊNCIA FOLHA

A questão agrária é uma das mais espinhosas da era FHC. A ação do governo, que apregoa ter assentado mais gente do que qualquer outro na história, fomentou o crescimento e a radicalização do MST. Depois de incluir a reforma agrária como uma das suas prioridades, Fernando Henrique Cardoso teve seu primeiro governo marcado por dois massacres em conflitos no campo: Corumbiara (RO), em 1995, e Eldorado do Carajás (PA), em 1996.
No massacre de Corumbiara, em agosto de 1995, os exames indicaram que alguns sem-terra foram mortos por policiais com tiros na nuca e nas costas. Mas o caso de Eldorado do Carajás foi ainda pior. Para um governo novo, em busca de respeitabilidade no exterior, o massacre, em abril de 1996, com 19 sem-terra mortos na desobstrução de uma rodovia pela Polícia Militar do Pará, determinada pelo governador Almir Gabriel (PSDB), representou um grande revés diplomático, com o país sendo reiteradamente condenado por organismos de defesa dos direitos humanos.
Carajás incentivou o recrudescimento das ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, que havia surgido no Sul nos anos 80 e que mantinha uma atuação relativamente discreta. Sob holofotes, o MST descobriu a invasão de terra como arma de pressão política: de 146, em 1995, o número de áreas invadidas saltou para 599 em 1998.
Progressivamente, o MST diversificou suas ações, organizando marchas, saques, invasões de prédios públicos. Em 1997, o movimento liderou uma marcha contra o governo FHC, que chegou a Brasília em 17 de abril.
A reação do governo federal veio em maio de 1998, quando o então ministro da Justiça, Renan Calheiros, determinou que toda ação do MST encontraria uma reação judicial.
O economista João Pedro Stedile, um dos principais ideólogos do MST, justifica a radicalização naquele momento. "Se bastasse fazer audiências e reuniões, o MST faria apenas reuniões."
O secretário de Reforma Agrária do Ministério do Desenvolvimento Agrário, Edson Luiz Vismona, tem opinião diferente. "A importância enquanto movimento social do MST é indiscutível, mas começaram os abusos, uma escalada na prática da violência à propriedade e ao patrimônio público. O Estado precisava agir."

Criminalização
Na prática, o sinal verde de Renan Calheiros aos secretários estaduais disparou um processo que o MST denomina de "criminalização" dos movimentos sociais no país. O Paraná foi o pioneiro nesse processo, com a Secretaria da Segurança Pública organizando megaoperações de reintegração de posse e promovendo escutas legais de membros-chaves do movimento.
Já no começo do segundo governo FHC, o Paraná foi pioneiro também ao infiltrar homens da P2 (a polícia secreta) nos assentamentos dos sem-terra. Em monografia para o curso de Política Estratégica da ESG (Escola Superior de Guerra), em 1999, o major Waldir Copetti Neves explicitou o método ao defender a tese de que o MST preparava uma guerrilha rural no Brasil.
O temor se disseminou, com revelações posteriores de que o Exército havia infiltrado agentes no MST. Ganharam corpo especulações de que os sem-terra estariam se associando a movimentos guerrilheiros como as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e agentes cubanos.
Em um primeiro momento, a estratégia governamental não impediu o MST de manter suas ações, fossem na zona rural ou nas áreas urbanas -com invasão de prédios públicos e saques de alimentos, especialmente no Nordeste. A partir de 2000, a Polícia Federal foi cada vez mais chamada a intervir nas suas ações, com aberturas de inquéritos e prisões.
Nesse momento, diz o advogado da CPT (Comissão Pastoral da Terra) Darci Frigo, começou a "judicialização dos movimentos sociais", ou seja, com o Poder Executivo agindo em consonância com o Judiciário no combate às ações do MST.
Para Vismona, é o MST que levou a Justiça a agir com mais rigor. "O MST ultrapassou a luta pela terra, hoje faz política ideológica e suas formas de se manifestar ultrapassaram também os limites da lei."

MP 2.027
Essa atuação, segundo ele, justificou a edição da MP (medida provisória) 2.027, de 4 de abril de 2000, que impede vistoria de áreas invadidas e decreta seu "congelamento" por dois anos para desapropriação. Além disso, a portaria 62 do ministério, de 27 de maio de 2001, estabelece a exclusão dos beneficiários da reforma envolvidos em ações de invasões a propriedades ou a prédios públicos.
Até meados deste ano, o ministério contabilizava 88 imóveis rurais interditados por conta da portaria, e 25 beneficiários da reforma agrária excluídos do processo, entre eles líderes que participaram da invasão da fazenda dos filhos do presidente FHC, em Buritis (MG), em março passado.
O resultado da ação foi incisivo: uma queda expressiva no número de invasões para 390 em 2000 e 194 em 2001.
A situação conflituosa acabou por escamotear um grande problema para a herança fernandista no campo. Para fins publicitários, o governo inflou seus balanços anuais da reforma agrária, ainda que os números corretos já fossem suficientes para bater o desempenho de todos os seus antecessores somados -diz ter assentado 588.173 famílias entre 1995 e 2001, contra 218.033 assentadas entre 1964 e 1994.
Em abril e maio passados, uma série de reportagens da Folha indicou que o governo maquiou os balanços, utilizando terrenos vazios, áreas sem casas e infra-estrutura básica (água, luz e esgoto). Além disso, o governo contou como "assentados" trabalhadores rurais que já estavam mortos havia anos. Uma auditoria do governo federal para mapear a reforma agrária, concluída em junho, revelou que só 3% das famílias oficialmente assentadas entre 1995 e 2001 receberam o título de posse definitiva das terras, último estágio e objetivo final do programa.
"Com a diminuição das ocupações, também diminuiu o número de assentamentos, por essa razão o governo teve que maquiar os números", afirma o geógrafo Bernardo Mançano Fernandes, da Unesp (Universidade Estadual Paulista). O sociólogo Zander Navarro, outro especialista na área, diz, porém, que em uma avaliação "honesta e criteriosa", se concluirá que a política fundiária é um dos principais destaques do governo Fernando Henrique Cardoso. Aparentemente, a resposta só será possível nos próximos anos.


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