São Paulo, quinta-feira, 19 de dezembro de 2002

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LUXO

Bairro de São Paulo concentra lojas de grifes globais que rendem mais que as matrizes nos EUA e Europa e as vendas cresceram mais de 1.000% nos anos FHC

As ruas onde o comércio nunca viu as crises reais

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Crise? Que crise? Isso não existe aqui", desdenha a vendedora. Não, você não está em Júpiter. Está na esquina da Oscar Freire com a Haddock Lobo, ao lado de uma plêiade de grifes cujos nomes são declamados pelos ricos brasileiros com a mesma empáfia com que seus pares britânicos entoam o nome das escolas onde os filhos estudam: Louis Vuitton, Cartier, Montblanc, Armani, Hugo Boss.
É onde os Jardins, de São Paulo, tentam parecer a Madison Avenue, de Nova York, a Goethestrasse, de Munique, ou a rue du Faubourg Saint-Honoré, em Paris, todas elas corredores do comércio de luxo de algumas das cidades mais ricas do planeta. É onde o Brasil cresce num ritmo que faz as taxas chinesas parecerem nanicas. Veja a Louis Vuitton, loja aberta em 1854 pelo maleiro de Napoleão 3º e que caiu nas graças dos ricos. A filial brasileira, na qual o preço de uma bolsa feminina varia de R$ 600 a R$ 27.350, cresceu 1.450% entre 1994 e 2002, segundo Marcelo Noschese, 38, diretor do LVMH Fashion Group Brasil, o dono da marca.
Nenhuma outra filial da Louis Vuitton em mercados considerados estratégicos, como o brasileiro, cresceu nessa velocidade, afirma Noschese.
No quesito faturamento, a loja brasileira da Haddock Lobo está entre as dez mais do mundo em vendas por metro quadrado.
Em escala parecida, o fenômeno se repete com outras marcas. A Cartier cresce mais de 30% ao ano, não em real, mas em dólar, desde 1994. "Os anos do Real foram maravilhosos. Entre 1994 e 1999, multiplicamos nosso faturamento por cinco", diz Edouard Bos, 57, diretor da empresa. Neste ano, quando as riquezas de todo o país não devem subir 2%, ele estima que a Cartier crescerá 20%.
A Armani, logo em frente à Louis Vuitton, exibe números tão impressionantes quanto a vizinha. Só no primeiro semestre deste ano, as vendas da Armani subiram 32% em dólares, afirma André Brett, que comanda a marca no Brasil.
O volume de dólares faturados por metro quadrado em São Paulo é maior do que o da loja Armani na Madison Avenue, em Nova York, segundo Brett.
A Montblanc vende tantas canetas no Brasil que o país se transformou no quinto maior mercado da marca. Só perde para os Estados Unidos, a França, a Itália e a Espanha (nessa ordem).
Em relógios, a performance da Montblanc é ainda mais impressionante: o país está em terceiro lugar em vendas, atrás só dos Estados Unidos e da Itália.

Blindagem
A explicação mais óbvia para o crescimento vertiginoso do mercado de luxo no Brasil é a concentração de renda.
Os 10% mais ricos têm uma renda média quase 30 vezes superior à renda dos 40% mais pobres (compare: na Alemanha e na França, essa relação é de quatro vezes; no Peru, de 25 vezes). Aqui, os 20% mais ricos detêm 65% da renda nacional.
"O mercado de luxo é uma titica, mas tem uma blindagem contra crises que não existe em outros setores", diz Brett, da Armani.
O câmbio sobrevalorizado entre 1994 e 1998 -"quando o brasileiro se sentiu rico pela primeira vez", como define Noschese, da Vuitton- levou o consumo de luxo à estratosfera. E, agora, é a instabilidade do dólar que mantém o crescimento acima do patamar dos 10% depois de 1999.
A razão é simples: todo mundo gosta de saber quanto terá de pagar no final do mês, tarefa impossível quando a conta é em dólar após o sobe-e-desce da moeda inaugurado em 1999.
A possibilidade de dividir compras feitas com cartão em três parcelas também ajuda a consolidar o mercado de luxo no Brasil.
Há também razões mais comezinhas. Aqui, o vendedor fala português, as roupas podem ser ajustadas e as trocas não exigem negociações via DDI.
O maior bicho-papão desse filão, até o dólar romper a barreira dos R$ 3, nem era financeiro, segundo Freddy Rabbat, 38, presidente da Montblanc do Brasil: era o medo da violência. "Quem tem tesão de comprar algo glamouroso se seus amigos estão sendo sequestrados?"
O advogado R.F.G., 59, é a prova dos nove da equação dinheiro + violência em escala de guerra = menos prazer em consumir.
R.F.G., que não quer ver sua identidade revelada por medo, tem "vários Porsches" (nem o número ele revela com precisão). São carros cujos preços variam de US$ 100 mil a US$ 300 mil.
Entretanto o advogado circula com um Fusca 66 desde 1999, quando passou as piores quatro horas de sua vida dentro de um Porsche com dois sequestradores.
Relógios, R.F.G. já teve furtados quatro: dois Breitling, um Piaget e um Bulgari. "No Brasil, não dá mais para usar as coisas que o seu dinheiro consegue comprar", diz.
Sem poder sair do Brasil, porque seu diploma de advogado não seria reconhecido em outros países, G. tem uma vingança contra todas as hostilidades: seu Fusca tem motor de Porsche.

Lei da compensação
Há outro fenômeno, de caráter mais global do que local, que ajudou a expandir o consumo sofisticado na última década: é o mercado das compensações pessoais.
"Você não tem dinheiro para comprar uma Ferrari, mas compensa o desejo com um relógio Bulgari. Não tira férias em Bora Bora, mas consegue comprar um creme da La Prairie", enumera Marcos Rothemberg, 30, presidente da Associação dos Importadores de Cosméticos e Perfumes.
A exuberância do mercado de cosméticos importados exemplifica a tese de Rothemberg. Em 1994, as importações foram de US$ 27,7 milhões; neste ano, devem fechar em US$ 105 milhões.
As marcas mais sofisticadas e com uma imagem consolidada são as que mais crescem, diz ele.
Vide a La Prairie, grife de cosméticos que nasceu da clínica de rejuvenescimento suíça, importada pelo próprio Rothemberg.
Um creme facial da La Prairie feito a base de caviar, o Skin Caviar Luxe Cream, custa R$ 1.200 a embalagem de 50 ml. Desde 1997, quando a La Prairie chegou aqui, as vendas da marca cresceram 260%. Como diz Rothemberg, a crise sempre poupa as marcas mais baratas e as mais caras.


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