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ESCÂNDALOS
Presidente nega ter sido conivente com a corrupção, mas manobrou para obstruir as tentativas de instalação de CPIs no Congresso para apurar a compra de votos e irregularidades nas privatizações
"Brasil velho" produz turbulências em série
JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Em meio ao caso Sivam, primeiro escândalo de vulto de sua gestão, Fernando Henrique Cardoso atacou, reservadamente, o "espírito de corvo" que costuma frequentar os corredores do governo. Referia-se a
"semeadores de intrigas", pessoas que cultivam "a mania de ver podridão em
tudo". Era novembro de 95. FHC vira-se forçado a afastar o chefe do cerimonial da Presidência, Júlio César Gomes dos Santos, e o ministro da Aeronáutica, Mauro Gandra, fulminados pela proximidade com representante da firma
norte-americana Raytheon.
O motor do escândalo era um
grampo telefônico urdido pelo
então presidente do Incra, Francisco Graziano. Daí a referência à
ave de grasnido áspero. Alusão a
poema de Edgar Allan Poe (1809-1849). Os versos falam de um corvo que entra na casa do narrador
e responde a todas as perguntas
assim: "Nunca mais".
Os escândalos proliferaram.
Um se sobrepondo ao outro. Fitas
do BNDES, compra de votos da
reeleição, caixa dois da campanha
presidencial, assaltos à Sudam...
Era como se a realidade desejasse
impor uma máxima inversa à do
corvo de Allan Poe: "Sempre
mais".
Assim como a fita do Sivam,
também o grampo do BNDES
(Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) teve
produção caseira. Foi tramado e
executado no ambiente da Abin
(Agência Brasileira de Inteligência). Divulgado, trouxe ao nível da
superfície o palavrório utilizado
nos subterrâneos da privatização
das telefônicas.
Soube-se que o maior negócio
da República fora trançado numa
atmosfera de alto risco ("no limite
da irresponsabilidade"), em meio
a um linguajar raso ("se der m...,
estamos juntos") e com pitadas
de truculência ("temos de fazer os
italianos na marra").
Soube-se ainda que Fernando
Henrique Cardoso ("a bomba
atômica"), quando consultado
("a idéia de que podemos usá-lo
aí para isso"), assentiu ("não tenha dúvida, não tenha dúvida").
Produziram-se duas baixas, até
hoje lamentadas pelo presidente:
os expurgos de Luiz Carlos Mendonça de Barros do Ministério
das Comunicações e de André Lara Resende da presidência do
BNDES.
Na raiz de alguns outros escândalos esteve uma contradição
que, sob FHC, ganhou viço: ele se
propôs a produzir um Brasil novo, mas foi buscar apoio em estruturas políticas de um Brasil velho.
Dividiu o governo em dois. Um
"sério". Outro nem tanto.
Manteve "a salvo" pastas como
Educação, Saúde e Fazenda. O
que não impediu, mesmo aí, o
surgimento de casos tão rumorosos quanto o episódio do socorro
ao Banco Marka, de Salvatore
Cacciola, sobre o qual ainda se debruça o Ministério Público.
DNER e Sudam
Levou ao balcão ministérios como Integração Nacional e Transportes. Ativaram-se ali as principais usinas de escândalos. O
DNER e a Sudam entre elas. Só
nesta última autarquia, a malversação sorveu quantia superior a
R$ 2 bilhões.
Em matéria de corrupção, o
presidente julga-se vítima de uma
torpeza: a veiculação do chamado
Dossiê Cayman, que se comprovaria falso. Qualifica de "ousadia
inaceitável" a difusão da suspeita
de que poderia manter conta milionária no exterior.
Desrespeitou-se, na sua opinião, não apenas a sua biografia,
mas a do governador Mário Covas, a do senador José Serra e a do
ministro das Comunicações Sérgio Motta. Queixa-se especialmente da Folha. Embora o jornal
tenha tido a precaução de apresentar o papelório como algo apócrifo e pendente de confirmação.
Só uma coisa consegue aborrecer mais FHC do que a lembrança
do fatídico dossiê: a acusação de
que foi leniente com a corrupção.
"Não roubou, mas deixou roubar", nas palavras do ex-tucano
Ciro Gomes. "O governo jamais
obstruiu investigações", refuta o
presidente. "Apurou-se tudo o
que veio à tona." Meia verdade.
Embora o atrabiliário procurador Luiz Francisco de Souza, consorciado com a imprensa, tenha
fracassado em sua tentativa de estabelecer vínculos monetários entre o juiz Nicolau dos Santos Neto,
do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, e o ex-auxiliar
palaciano Eduardo Jorge, muito
do que foi escarafunchado sob
FHC deveu-se à ação de procuradores da República.
No caso da Sudam, por exemplo, um comitê de procuradores
virou a autarquia do avesso.
Apontado como chefão do esquema, o hoje deputado eleito Jader
Barbalho encontra-se indiciado
em dois processos, em Tocantins
e em Mato Grosso.
A favor de FHC há o fato de que,
uma vez lancetados os tumores,
não travou as engrenagens investigativas do governo, postas a serviço do Ministério Público. A Receita Federal é o melhor exemplo.
Receita Federal
No momento, o Fisco realiza
uma devassa na empresa Lunus,
de propriedade da ex-governadora do Maranhão Roseana Sarney e
do marido dela, Jorge Murad. Em
uma batida policial organizada
como subproduto da apuração na
Sudam, encontrou-se no escritório da Lunus R$ 1,4 milhão. "É dinheiro de campanha", sustenta
Murad. Concluído o trabalho dos
auditores fiscais, talvez precise
dar mais explicações.
Acionada pela Procuradoria da
República, a Receita também audita declarações de rendimentos
de pessoas que coletaram dinheiro para o caixa dois da campanha
do próprio Fernando Henrique
Cardoso. "Nunca sofri nenhum
tipo de pressão", testemunha o
secretário Everardo Maciel, em
diálogos reservados.
Contra FHC pesa a evidência de
que manobrou para obstruir tentativas de instalação no Congresso de comissões parlamentares de
inquérito. Escândalos foram à cova com vida. Entre eles o da compra de votos e o do grampo do
BNDES. O mesmo aparato fisiológico que injetou desvios em setores da máquina pública forneceu a FHC a maioria congressual
que esmagou as tentativas de apuração sob holofotes.
Muitos escândalos, em consequência, sobreviverão ao atual governo. Alguns ainda recheiam os
escaninhos do Judiciário. De resto, tão cedo FHC não vai se livrar
de um fantasma que o ronda: o receio de que sua voz surja, de uma
hora para outra, em eventuais
diálogos dos grampos do Sivam e
do BNDES. Teme ter mantido
com os grampeados conversas
que ainda não vieram a público.
Nada desabonador, sustentam os
seus auxiliares.
No momento, FHC tenta assegurar para si o chamado foro privilegiado. Acha que, quando
questionado por atos que praticou como presidente, deve ser julgado pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e não por juízes de
primeira instância. A tese ganha
adeptos no Congresso. Antes contrário, o PT agora é a favor.
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