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Cartografia atual
BIENAL VIVE CONFUSÃO ENTRE SER EVENTO "DE PONTA" OU COM PENDORES MUSEOLÓGICOS
LISETTE LAGNADO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Já sabemos que não há
uma bienal, mas várias, da ordem de
uma centena, talvez.
Há bienais em Berlim, Havana,
Istambul, Johannesburgo, Liverpool, Liubliana, Pontevedra, Porto Alegre, Santa Fé, Seul, Sydney e
assim por diante.
É uma contabilidade que se espalha pelo mundo, agrupando em
progressão vertiginosa uma categoria profissional, os curadores
independentes, que já ganhou o
jargão de "cartógrafo" porque esquadrinha territórios em sua busca de "novos talentos".
O formato da Bienal de São Paulo foi inspirado na matriz de Veneza, mas hoje tamanho não é documento, e mostras de porte mais
acanhado chegam a um prestígio
equiparável.
METÁFORA DA FORÇA
Bienais, documentas e manifestas entraram na rota do turismo
cultural, garantindo um olhar internacional sobre sua cidade-sede. Conseguem carrear um sucesso que reverbera em lugares até
então pouco expressivos artisticamente. A sugestão da imagem de
olimpíadas não é tão fora de propósito assim, com sua metáfora
da força, presente em todas as etapas da realização: levantar verbas,
atrair artistas e críticos de renome, destrinçar embaraços alfandegários, problemas de montagem, de iluminação, de brios.
Mas o sucesso nem sempre
acompanha, pois são as exposições mais sujeitas a ataques. Não é
para menos, se considerarmos
que vitrines internacionais se tornaram o meio de historicizar a arte contemporânea. As críticas podem ser reduzidas a um julgamento comum: falta de critérios
objetivos para participar do jogo.
Há de ser observada ainda a dificuldade de geração contínua de
valores para tantos eventos que
ocorrem simultaneamente.
Em seus 50 anos de existência, a
Fundação Bienal de São Paulo
atravessou importantes transformações conceituais que procurarei sintetizar neste curto espaço
para destacar as expectativas que
a rondam.
1) A escultura "Unidade Tripartida", de Max Bill, é premiada na
1ª Bienal de São Paulo. Mário Pedrosa interpreta o impacto desse
evento como mudança de paradigma para a reflexão crítica, que
até então só defendia a produção
figurativa e que passa a acolher a
arte concreta brasileira. O que leva à constatação de que a polêmica das influências estrangeiras é
um fardo que acompanha a Bienal desde a sua fundação.
2) No início da década de 80, o
historiador Walter Zanini abdica
do discurso das fronteiras geopolíticas para a arte e institui as
montagens por analogia de linguagem. Findo o período de
Guerra Fria e de regime militar, a
decisão tem um teor político, passo decisivo na recuperação do
prestígio internacional da Bienal
de São Paulo. A ação curatorial
passa a consistir em afinar a idéia
geral da mostra, questionando e
negociando os envios das representações nacionais.
3) A cena artística testemunha a
passagem de mostras anteriormente organizadas sem a figura
do curador para um fortalecimento autoral, chegando a dissolver as margens entre curador e artista. Dois marcos balizam a história curatorial dos últimos quinze anos: "A Grande Tela" da 18ª
Bienal (Sheila Leirner), alinhando
os pintores do chamado neo-expressionismo, e a antropofagia
apresentada na 24ª Bienal (Paulo
Herkenhoff).
Este último procurou articular
uma afirmação cultural do país.
Curiosamente, o termo "internacional" é eclipsado do nome do
evento. Não lhe pouparam críticas, como o inchaço das responsabilidades curatoriais na elaboração de uma teoria da arte. Hoje,
as ressalvas constituem sua força.
Afinal, ser curador é uma atividade crítica.
4) Seguindo a lógica da economia global, tornou-se frequente
delegar a um convidado estrangeiro a tarefa de organizar uma
bienal, trienal ou quinquenal, levando-o a sair de seu lugar de origem. Pela amplidão das tarefas, a
responsabilidade não é mais exclusiva de um crítico, mas pertence a um time curatorial.
5) As três últimas edições da
Bienal de São Paulo concentraram seus esforços nos segmentos
históricos. O raciocínio é de que
trazem mais visitação. Isto vem
gerando uma confusão identitária
entre a vontade de ser um evento
"de ponta" ou com pendores museológicos.
OS ACERTOS
FORAM
MAIORES
QUANDO
EXIBIAM
GESTOS
AUDACIOSOS
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SALAS CLIMATIZADAS
Nessa briga, poucos prestam
atenção às trajetórias em processo
de William Kentridge e Francis
Alys. O debate entra em colisão
com a produção contemporânea,
pois o público invariavelmente sai
preferindo as salas climatizadas,
cuja expografia é cuidada com rigor de Primeiro Mundo para
atentar na fragilidade das obras.
Nada contra, mas a escolha dos
artistas históricos deveria se voltar para o esclarecimento dos movimentos atuais.
As boas coletivas internacionais
têm investido menos em consagrações e mais em sua vocação
para laboratório de idéias a não
confundir com plataforma para
emergentes. Discutem a posição
do artista no mundo contemporâneo. A história das bienais demonstrou que os acertos foram
maiores quando assumida a função de apresentar gestos audaciosos. "Arte total" e "crítica institucional" são as expressões que estão de volta, geralmente em obras
interdisciplinares.
Por exemplo, "Cities on the Move" (1998), com curadoria de Hou
Hanru e Hans-Ulrich Obrist,
questionava os fluxos nas cidades
asiáticas às vésperas do século 21,
reunindo, além de artistas, também arquitetos e urbanistas, para
propor mudanças em assuntos
tais como trânsito, crescimento
populacional, globalização, novas
tecnologias etc. Mostravam sua
conexão com projetos e utopias
de cidades reais e imaginárias.
O significado da vida em espaços urbanos, com suas metáforas
de deslocamento e transitoriedade, é ainda o tema do importante
trabalho realizado pelo grupo cubano Los Carpinteiros, cuja "Cidade Transportável", premiada
na última Bienal de Havana, pode
ser vista até setembro no P.S. 1
Contemporary Art Center.
Cabe reconhecer, diante deste
panorama de mudanças, que se
nossa mais importante instituição
artística chegou a ser ameaçada
não o foi sempre em função do
debate cultural. O assunto da arte
entrou na esfera do subjetivismo e
tornou-se refém de exposições
grandiloquentes.
ESPETÁCULO
Com sinais de esgotamento, a
máquina a serviço do espetáculo
acabou tornando visível o mundano em vez de continuar dotando o evento de instrumentos críticos. Será possível revisar a formação de dogmas, a perpetuação de
tendências e modelos de exibição,
a transmissão dos conteúdos ao
público, problemas que se amontoam na corrida, no cumprimento dos prazos, sem repensar sua
escala?
Os tempos, neste sentido, pouco
mudaram. O próprio Mário Pedrosa registrara que "a 1ª Bienal
foi uma pura jogada de improvisação". E que não venham tampouco erigir um monumento às
primeiras bienais porque elas
trouxeram Picasso, Léger ou Calder. As recentes participações de
Armando Reverón, Fluxus, Louise Bourgeois, Mira Schendel, Anselm Kiefer e Anish Kapoor foram
de cortar o fôlego. A Bienal de São
Paulo é um evento impreterível
para um país que carece de conhecimento acerca de criadores
com relevante contribuição.
Lisette Lagnado é crítica de arte e curadora independente, autora de "Leonilson - São Tantas as Verdades" (Dórea
Books and Art).
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