São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

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Cartografia atual

BIENAL VIVE CONFUSÃO ENTRE SER EVENTO "DE PONTA" OU COM PENDORES MUSEOLÓGICOS

LISETTE LAGNADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Já sabemos que não há uma bienal, mas várias, da ordem de uma centena, talvez. Há bienais em Berlim, Havana, Istambul, Johannesburgo, Liverpool, Liubliana, Pontevedra, Porto Alegre, Santa Fé, Seul, Sydney e assim por diante.
É uma contabilidade que se espalha pelo mundo, agrupando em progressão vertiginosa uma categoria profissional, os curadores independentes, que já ganhou o jargão de "cartógrafo" porque esquadrinha territórios em sua busca de "novos talentos".
O formato da Bienal de São Paulo foi inspirado na matriz de Veneza, mas hoje tamanho não é documento, e mostras de porte mais acanhado chegam a um prestígio equiparável.

METÁFORA DA FORÇA
Bienais, documentas e manifestas entraram na rota do turismo cultural, garantindo um olhar internacional sobre sua cidade-sede. Conseguem carrear um sucesso que reverbera em lugares até então pouco expressivos artisticamente. A sugestão da imagem de olimpíadas não é tão fora de propósito assim, com sua metáfora da força, presente em todas as etapas da realização: levantar verbas, atrair artistas e críticos de renome, destrinçar embaraços alfandegários, problemas de montagem, de iluminação, de brios.
Mas o sucesso nem sempre acompanha, pois são as exposições mais sujeitas a ataques. Não é para menos, se considerarmos que vitrines internacionais se tornaram o meio de historicizar a arte contemporânea. As críticas podem ser reduzidas a um julgamento comum: falta de critérios objetivos para participar do jogo. Há de ser observada ainda a dificuldade de geração contínua de valores para tantos eventos que ocorrem simultaneamente.
Em seus 50 anos de existência, a Fundação Bienal de São Paulo atravessou importantes transformações conceituais que procurarei sintetizar neste curto espaço para destacar as expectativas que a rondam.
1) A escultura "Unidade Tripartida", de Max Bill, é premiada na 1ª Bienal de São Paulo. Mário Pedrosa interpreta o impacto desse evento como mudança de paradigma para a reflexão crítica, que até então só defendia a produção figurativa e que passa a acolher a arte concreta brasileira. O que leva à constatação de que a polêmica das influências estrangeiras é um fardo que acompanha a Bienal desde a sua fundação.
2) No início da década de 80, o historiador Walter Zanini abdica do discurso das fronteiras geopolíticas para a arte e institui as montagens por analogia de linguagem. Findo o período de Guerra Fria e de regime militar, a decisão tem um teor político, passo decisivo na recuperação do prestígio internacional da Bienal de São Paulo. A ação curatorial passa a consistir em afinar a idéia geral da mostra, questionando e negociando os envios das representações nacionais.
3) A cena artística testemunha a passagem de mostras anteriormente organizadas sem a figura do curador para um fortalecimento autoral, chegando a dissolver as margens entre curador e artista. Dois marcos balizam a história curatorial dos últimos quinze anos: "A Grande Tela" da 18ª Bienal (Sheila Leirner), alinhando os pintores do chamado neo-expressionismo, e a antropofagia apresentada na 24ª Bienal (Paulo Herkenhoff).
Este último procurou articular uma afirmação cultural do país. Curiosamente, o termo "internacional" é eclipsado do nome do evento. Não lhe pouparam críticas, como o inchaço das responsabilidades curatoriais na elaboração de uma teoria da arte. Hoje, as ressalvas constituem sua força. Afinal, ser curador é uma atividade crítica.
4) Seguindo a lógica da economia global, tornou-se frequente delegar a um convidado estrangeiro a tarefa de organizar uma bienal, trienal ou quinquenal, levando-o a sair de seu lugar de origem. Pela amplidão das tarefas, a responsabilidade não é mais exclusiva de um crítico, mas pertence a um time curatorial.
5) As três últimas edições da Bienal de São Paulo concentraram seus esforços nos segmentos históricos. O raciocínio é de que trazem mais visitação. Isto vem gerando uma confusão identitária entre a vontade de ser um evento "de ponta" ou com pendores museológicos.


OS ACERTOS FORAM MAIORES QUANDO EXIBIAM GESTOS AUDACIOSOS



SALAS CLIMATIZADAS
Nessa briga, poucos prestam atenção às trajetórias em processo de William Kentridge e Francis Alys. O debate entra em colisão com a produção contemporânea, pois o público invariavelmente sai preferindo as salas climatizadas, cuja expografia é cuidada com rigor de Primeiro Mundo para atentar na fragilidade das obras. Nada contra, mas a escolha dos artistas históricos deveria se voltar para o esclarecimento dos movimentos atuais.
As boas coletivas internacionais têm investido menos em consagrações e mais em sua vocação para laboratório de idéias a não confundir com plataforma para emergentes. Discutem a posição do artista no mundo contemporâneo. A história das bienais demonstrou que os acertos foram maiores quando assumida a função de apresentar gestos audaciosos. "Arte total" e "crítica institucional" são as expressões que estão de volta, geralmente em obras interdisciplinares.
Por exemplo, "Cities on the Move" (1998), com curadoria de Hou Hanru e Hans-Ulrich Obrist, questionava os fluxos nas cidades asiáticas às vésperas do século 21, reunindo, além de artistas, também arquitetos e urbanistas, para propor mudanças em assuntos tais como trânsito, crescimento populacional, globalização, novas tecnologias etc. Mostravam sua conexão com projetos e utopias de cidades reais e imaginárias.
O significado da vida em espaços urbanos, com suas metáforas de deslocamento e transitoriedade, é ainda o tema do importante trabalho realizado pelo grupo cubano Los Carpinteiros, cuja "Cidade Transportável", premiada na última Bienal de Havana, pode ser vista até setembro no P.S. 1 Contemporary Art Center.
Cabe reconhecer, diante deste panorama de mudanças, que se nossa mais importante instituição artística chegou a ser ameaçada não o foi sempre em função do debate cultural. O assunto da arte entrou na esfera do subjetivismo e tornou-se refém de exposições grandiloquentes.

ESPETÁCULO
Com sinais de esgotamento, a máquina a serviço do espetáculo acabou tornando visível o mundano em vez de continuar dotando o evento de instrumentos críticos. Será possível revisar a formação de dogmas, a perpetuação de tendências e modelos de exibição, a transmissão dos conteúdos ao público, problemas que se amontoam na corrida, no cumprimento dos prazos, sem repensar sua escala?
Os tempos, neste sentido, pouco mudaram. O próprio Mário Pedrosa registrara que "a 1ª Bienal foi uma pura jogada de improvisação". E que não venham tampouco erigir um monumento às primeiras bienais porque elas trouxeram Picasso, Léger ou Calder. As recentes participações de Armando Reverón, Fluxus, Louise Bourgeois, Mira Schendel, Anselm Kiefer e Anish Kapoor foram de cortar o fôlego. A Bienal de São Paulo é um evento impreterível para um país que carece de conhecimento acerca de criadores com relevante contribuição.


Lisette Lagnado é crítica de arte e curadora independente, autora de "Leonilson - São Tantas as Verdades" (Dórea Books and Art).


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