São Paulo, Quinta-feira, 20 de Maio de 1999
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INFORMAÇÃO PRIVILEGIADA
Movimento de R$ 30,5 bi por dia no sistema financeiro transforma em fortuna conhecimento de dados privilegiados
Mercado sem controle leva à tentação do lucro fácil

CELSO PINTO
do Conselho Editorial

Os três principais mercados futuros de juros e de câmbio da Bolsa de Mercadoria & Futuros negociaram, em média, R$ 30,5 bilhões a cada dia útil, no ano passado. Quem quer que soubesse de alguma informação privilegiada que pudesse mexer nos preços, ainda que minimamente, poderia ter feito fortunas.
Os valores envolvidos nos mercados financeiros são tão astronômicos, que tornam inevitável a tentação do tráfico de informações. Não há comissão em obra faraônica que supere o ganho possível para quem saiba antes de alguma mudança, por exemplo, dos juros.
E, no entanto, não há qualquer fiscalização sobre o uso de informações privilegiadas nestes mercados. Pior ainda, não há leis que punam o uso de informações privilegiadas em mercados futuros de juros e câmbio. O único mercado sujeito a uma lei deste tipo é o acionário, que gira, hoje, perto de R$ 1 bilhão por dia.
O Banco Central não tem uma área dedicada a este tipo de problema, embora caiba a ele fiscalizar mercados futuros de câmbio e juros. O BC, na verdade, não tem sequer um sistema de acompanhamento, em tempo real, dos mercados que fiscaliza, e que possa chamar a atenção para movimentos atípicos de preços, lembra o ex-diretor do BC, Alkimar Moura.
Mesmo na área do mercado acionário, onde existe lei e já foram abertos vários processos, as condenações sãio tão raras que o Francisco da Costa e Silva, presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), e o ex-presidente Ary Oswaldo de Mattos Filho disseram desconhecer qualquer condenação, embora a Folha tenha apurado ter havido 3 condenações em 26 anos da vigência da Lei das S.A.
Não surpreende, portanto, que a questão da informação privilegiada tenha sido tratada de forma tão superficial na CPI dos Bancos. O BC já admitiu que estuda mudanças, tanto na área de fiscalização quanto na área de intervenções, num reconhecimento implícito de que o episódio da ajuda aos bancos Marka e Fonte Cindam deixaram claro falhas a corrigir.
Na questão do uso de informações privilegiadas, contudo, tudo se resumiu, por enquanto, a um bate-boca.
A oposição levantou suspeitas mal costuradas, misturando números e conceitos, sem fornecer evidências sólidas. O governo, por sua vez, comemorou a derrapada, declarou todos inocentes e passou para outro assunto.
Mesmo que, por hipótese, a CPI provasse que o banco "A" obteve informação privilegiada do funcionário público "X" e que lucrou bilhões com isso, a consequência seria limitada. O funcionário poderia ser enquadrado no Código Penal porque o Estatuto do Funcionário Público tipifica como crime dar informações para proveito próprio, lembra Costa e Silva.
O Banco "A", contudo, só seria condenado se fosse provado que foi corruptor (ativo ou passivo) do funcionário. O ganho, em si, não estaria sujeito a escrutínio.
Fica claro, portanto, que, se há uma área onde o trabalho da CPI deveria gerar algum avanço institucional é no controle do uso de informações privilegiadas.
O tráfico deste tipo de informações é tão antigo quanto o mercado financeiro. A suspeita levada à CPI era de que um grupo de bancos poderia ter tido informação privilegiada sobre a mudança do câmbio, razão pela qual mudaram bruscamente de posição nas vésperas da alteração.
Foi levantada, também, a suspeita, sem provas, de que havia um esquema montado por bancos cariocas para obter informações privilegiadas sobre mudanças de taxas de juros.
Quanto valeriam estas informações?
O mercado futuro de câmbio comercial da BM&F movimentou R$ 8,8 bilhões por dia, no ano passado. O futuro de juros (DI) movimentou R$ 13,4 bilhões por dia. E o mercado de "swaps", que envolve trocas de posições entre juros pré e pósfixados e entre juros e dólares, girou R$ 8,3 bilhões por dia. Os três somaram os R$ 30,5 bilhões citados no início deste artigo.
Qualquer mercado cujo preço dependa de decisões do governo é uma tentação, como era o câmbio administrado e ainda é a taxa de juros. É uma história antiga.
No início dos anos 80, por exemplo, o governo corrigia seus papéis e calibrava os juros "overnight" usando a inflação medida pela Fundação Getúlio Vargas. A cada 10 dias era feita uma rodada parcial do índice. Se vinha mais alta ou mais baixa do que o mercado esperava, o governo tinha que corrigir os juros. Saber o número da FGV valia ouro.
O mercado financeiro fazia um cerco que ia da aproximação a funcionários da FGV, no Rio, até a quem tinha acesso aos números na Secretaria de Planejamento, em Brasília. Muitas histórias corriam, mas nunca qualquer fato ou rumor foi apurado.
Para coibir o uso de informação privilegiada, é preciso três coisas, diz Ary Oswaldo Mattos Filho, um dos maiores especialistas em regulação de mercados: ter uma lei adequada, aplicá-la e ter punições exemplares e públicas. O Brasil não cumpre nenhum dos três requisitos.
A Lei das S.A, de 76, falava em informação privilegiada, aplicável apenas aos administradores, conselheiros e diretores das empresas. Em 97, a lei 9.457 mudou a Lei das SA e apertou as punições, criando uma multa de até três vezes o valor do ganho ou do que se deixou de perder a partir do uso de informação privilegiada.
Cabe à CVM, que regula o mercado acionário, aplicar a lei. Mattos Filho lembra, contudo, que é muito difícil armar um processo decente nesta área, quando a CVM não pode sequer quebrar o sigilo bancário dos acusados. O equivalente americano da CVM, a Securities and Exchange Commission (SEC), tem este poder e muitos outros.
Levar a sério a questão implicaria em mexer em enormes interesses, lembra. No Brasil, os donos da empresa normalmente controlam a Assembléia Geral, comandam o Conselho de Administração, estão na diretoria e são donos de muitas ações. São a própria definição de "insiders".
Costa e Silva diz que, em mais de 10 pedidos que fez ao Judiciário de quebra de sigilo em processos de uso de informação privilegiada, em apenas 1 ou 2 casos ela foi concedida. Mesmo assim, nunca houve condenações.
Além da dificuldade de provar o delito sem ter acesso às contas bancárias, ele lembra outro obstáculo "intransponível": os paraísos fiscais. Se quem cometeu o delito entrou com o dinheiro via um fundo de um paraíso fiscal, não há como obter o nome dos aplicadores reais e o processo dá em nada. Não é um problema só do Brasil, observa, mas já arruinou muitos processos nesta área.
No caso dos mercados futuros, a situação é ainda pior, já que não há sequer uma leimespecífica.
Coibir o uso destas informações exige tecnologia, pessoal especializado e uma cultura que iniba o delito. A SEC americana, que regula todos os mercados de títulos, exceto os mercados futuros, tem sistemas estatísticos próprios e das bolsas, que apontam, em tempo real, comportamentos anormais de preços. A consulta à empresa ou investidor envolvido é imediata.
Se há algo estranho, a investigação é instalada. É punível tanto uma informação comprada de alguém, quanto uma conversa ouvida do sogro, num jantar familiar, sobre uma iminente aquisição na empresa em que ele é diretor. Se alguém usar esta informação para comprar uma ação e tiver lucro com ela, está sujeito a multa e a processo.
A SEC estimula a denúncia. Quem fornecer pistas sobre delitos nesta área, pode ganhar uma recompensa de até 10% do valor da multa. Como alguns casos célebres envolvem dezenas de milhões de dólares, a recompensa pode ser fantástica.
Numa instituição financeira nos Estados Unidos, os contatos entre setores são limitados: operadores, pesquisadores, responsáveis pela tesouraria, etc., só podem falar entre si em certas circunstâncias. Quem opera tem registro na SEC, que sabe seu número na previdência e de seus parentes próximos. Pode localizar facilmente negócios feitos nos mercados.
Existe temor à SEC, porque os processos e punições são constantes, alguns ruidosos. O jornal "The Wall Street Journal" e a revista "Business Week" tiveram colunistas investigados e punidos pela SEC.
Há o temor de perder o registro na SEC, ou de ser denunciado. Um processo movido pela SEC pode arruinar a reputação de um executivo ou de um banco, além de ativar uma legião de outros investigadores governamentais, a começar pelo Imposto de Renda.
Os bancos de investimento têm departamentos que zelam pelo cumprimento das regras. Existem listas de ações divulgadas diariamente cuja compra ou venda é vetada a qualquer funcionário do banco, porque, em algum departamento, alguma operação está sendo feita com a empresa.
Se um funcionário do banco quer fazer uma aplicação em ação, precisa pedir autorização ao superior, que consulta o departamento. Se fizer uma aplicação e não comunicá-la, pode ser demitido.
Nada disto impede que haja informação privilegiada no mercado americano, mas reduz, em muito, o tamanho do problema. No Brasil, os recursos são muito mais limitados.
A CVM tem um sistema de acompanhamento "real time", via bolsas de valores. Todos os negócios são monitorados por parâmetros estatísticos que consideram o número de negócios feitos nos últimos 50 dias, o valor da cotação e o volume negociado.
Se algum destes parâmetros fugir do padrão, acende uma luz amarela e a CVM vai investigar junto à empresa e ao investidor final. Se for o caso, abre um processo.
Em um ponto, diz Costa e Silva, a CVM tem mais poder do que a SEC. No limite, a CVM pode suspender uma ação, algo que a SEC não faz.
O fato, contudo, é que a lei e a investigação são limitadas, não há uma cultura, nem exigências ao mercado no sentido de coibir a prática, além de uma enorme confusão na definição de quem é responsável pela fiscalização do quê.
A CVM fiscaliza uma parte do mercado, o BC outra, a Susep fica com seguros e divide a fiscalização da previdência complementar com a Secretaria de Previdência Complementar. Cada um tem uma abordagem própria, algumas regras se chocam e algumas zonas ficam cinzentas. No que diz respeito a informações privilegiadas, contudo, há uma unanimidade: a impunidade é total, em qualquer mercado.


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